Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

Textos de Marcelo Mosse

Seis semanas atrás, o Governo queniano convidou o FBI americano para realizar uma faxina de intromissão estrangeira na sua soberania: combater o cibercrime. Nairobi baixou a bola, varreu fingimentos narcisistas e foi pedir socorro a quem tem competências, deixando de lado quaisquer considerandos de soberania de Estado.

 

O cibercrime no Quênia é um cancro, afectando sobretudo o sector financeiro e uma sociedade cada vez mais digitalizada. Sua indústria estava a crescer de forma assustadora, com gangues organizadas comandando a área sob visível impunidade, afugentado negócios e investimento.

 

O governo disse basta. Foram pedir ajuda à mão externa. Um pragmatismo de Estado que merece louvor. O governo de Nairobi mostrou liderança, colocando o dedo na ferida, sentindo a dimensão da sua dor e buscando a panaceia contra todos os anticorpos que impediam a capacidade do Estado em pôr ordem na casa.

 

Nosso Governo fez isso com Cabo Delgado. Quando a indústria da guerra se apercebeu de que o cancro estava corroendo até sua capacidade de sobrevivência, foi bater portas no estrangeiro, deixando de lado considerandos de soberania de Estado.

 

Não foi a primeira vez que Moçambique abraçou a mão externa numa área teoricamente sensível para os negócios do Estado e para a auto estima de nação soberana.

 

Em 1997, o governo contratou uma empresa privada estrangeira, a Crown Agents, para exercer a gestão operativa das Alfândegas. Entregamos o controle aduaneiro de bens, valores, mercadorias, meios de transporte, passageiros e bagagens a um gestor-delegado britânico, essa outra mão externa nos momentos inconvenientes.

 

Nossa arrecadação fiscal foi, pois, entregue a um estrangeiro, mas isso só foi possível porque o sector alfandegário estava mergulhado no enriquecimento ilícito, com gangues tomando liderança de um quadro perverso de delapidação do erário público, colocando em risco a sobrevivência do Estado. Há quem tapou o nariz! Crown Agents gerindo as alfândegas? Uns espiões do MI6?

 

Mas a limpeza era necessária. E a recuperação institucional um imperativo. O Governo de Chissano, é certo que pressionado pelo Banco Mundial, no quadro do ajustamento estrutural, abriu mão da famigerada soberania. Poucos anos depois e tínhamos uma nova Alfandega, quase modernizada, com nova postura ética e uma unidade de controle interno para controlar a corrupção.

 

Nosso país vive hoje um problema que exige baixar a bola como Nairobi fez em face do ciber-crime. Os raptos viraram uma indústria cancerosa, operando de dentro do SERNIC, das estruturas policiais, alimentando uma economia paralela, afugentando o negócio e o investimento.

 

Durante longos anos, o Estado vem fingindo que pode, sem apoio externo, melhorar a estrutura de resposta contra este crime. É mentira! Uma mentira sustentada por gente que tira proveito dessa indústria. Nesta área específica, nosso governo vai protelando a decisão de pedir apoio externo com vista a limpeza institucional do SERNIC, gerando a suspeita de que há sectores do Executivo que se alimentam na indústria.

 

Já chega de desgoverno! O SERNIC precisa de um abanão...nas suas raízes, de uma reforma por mimetismo institucional (tal como Nairobi fez ao convidar o FBI)...ou as elites políticas estão profundamente mergulhadas na criminalidade organizada que a melhor decisão é deixar o caos da impunidade vigorando. (Marcelo Mosse)

 

Era preciso Marcelo Rebelo de Sousa vir a Moçambique para Lisboa autorizar que moçambicanos viajassem para Portugal sem restrições. Rebelo de Sousa chegou  hoje a Maputo, terra onde ele viveu e que considera sua segunda pátria e com Portugal tem “ligações de fraternidade que são únicas”.

 

Essa fraternidade esteve em banho-maria durante longos meses. Sem decreto conhecido, moçambicanos que quisessem viajar para Portugal eram simplesmente vexados com uma recusa de visto. Grosso modo, a opinião pública |moçambicana andava com os nervos à flor da pele. Há relatos de moçambicanos que tiveram que recorrer à Embaixada da Espanha para obterem um visto Schengen para se deslocarem a Portugal.

 

As redes sociais foram inundadas de comentários criticando a diplomacia moçambicana por não aplicar uma medida recíproca. Ou seja, no mesmo período de fechamento de Portugal aos moçambicanos, cidadãos portugueses podiam entrar em Moçambique sem restrições, obtendo inclusive vistos de fronteira, nomeadamente no Aeroporto de Mavalane. A razão para as restrições nunca foram sobejamente explicadas. E os moçambicanos podiam viajar para qualquer parte do mundo.

 

Agora, com a vinda de Marcelo, Lisboa empenhou-se em lavar uma nódoa profunda, dando a entender, nas entrelinhas, que as restrições tinham a ver com a Covid19. Os moçambicanos já podem entrar em Moçambique sem restrições. E Marcelo Rebelo de Sousa evita um grande mal estar, ele que nutre publicamente uma afeição por este país. Seja como for, esta interrupção da fraternidade por decreto português mostra como a politica fragiliza os laços entre os povos e coloca reticências na construção da dita comunidade lusófona. (Marcelo Mosse)

sexta-feira, 04 março 2022 03:27

O significado da remodelação governamental

O Presidente Filipe Nyusi engendrou esta remodelação para fazer uma nova arrumação das suas peças no xadrez. Mas qual é o seu objectivo central?

 

Ela tem como pano de fundo o Congresso da Frelimo, que terá lugar algures neste ano. Nyusi está a lançar aos militantes da Frelimo (e à Sociedade) a ideia do inconformismo, que ele também partilha da crise que o país vive. A economia tarda em relançar-se, depois da Covid 19, e vem aí mais choques externos, provavelmente nos combustíveis e pão, por causa do ataque russo à Ukrania.

 

Então, a ideia de um novo governo mostra um cometimento para a mudança, representa a imagem de um novo arregaçar de mangas. De resto, a nova disposição das pedras no tabuleiro é mais forte. Há poucos meses do Congresso, Nyusi não pode ser acusado de ter ficado de braços cruzados; até trocou um Primeiro-ministro, colocando Adriano Maleiane, uma figura mais afável embora acusado de nunca impor sua autoridade.

 

Esta remodelação faz também uma coisa: deixar cair o voluntarioso Ministro das Obras Públicas e Habitação, de uma forma suave, aliviando o peso de uma demissão por eventual mau desempenho. A forma como Machatine sai do Governo, ele que era uma das principais pedras do Presidente, foi muito bem estudada. Machatine não foi afastado como um inútil. Com ele, Nyusi demitiu quase que solidariamente o PM Carlos Agostinho do Rosário, numa perspectiva de controle de danos. Se Machatine tivesse saído sozinho, todo mundo estaria hoje concentrando seu debate nas Revimos e estradas deficientes, mas o mal foi distribuído pelas aldeias.

 

João Machatine é um homem que arregaçou as mangas e fez os trabalhos que lhe competia. Mas caiu na armadilha de uma conjuntura hostil, uma economia política das obras públicas marcada pela corrupção e compadrio, empreiteiros piratas, engenheiros falsários, concursos manipulados, onde pastas de dinheiro são distribuídas pelas escadas de serviço, ditando a adjudicação de obras. Nos últimos dias, João Machatine denunciou alguns desses males mas, em véspera de Congresso, Nyusi preferiu fazer as vontades das correntes internas que lhe arrastaram para a mudança.

 

Mais uma vez, o Congresso como ponto de chegada – e quem sabe de partida para o PR se propor para um terceiro mandato – foi um factor determinante para a mudança.

 

O homem escolhido para as Obras Públicas e Habitação, Carlos Mesquita, é uma figura de respeito e com uma folha limpa. Um empreendedor que conhece muito bem as artimanhas de quem está no sector privado e que vai ter que dar tudo para defender seu prestígio. Seus maiores desafios são a reabilitação da EN1, com 600 milhões de USD já assegurados pelo Banco Mundial, a retenção e provisão de água e a reconstrução de Cabo Delgado,

 

A demissão de Augusta Maíta decorre do mesmo objectivo de Nyusi se pacificar com algumas correntes internas descontentes. Maíta, mal assessorada, entrou em guerra com os generais das pescas, retirando-lhes, sem justificação plausível, suas quotas de pescaria para a presente época. Isso aconteceu em Dezembro de 2021. Nas últimas semanas, Maita foi inundada de cartas de armadores reclamando contra suas decisões. É muito bem provável que o generalato tenha ido bater à porta de Filipe Nyusi.

 

De resto, Augusta Maíta já estava em guerra contra tudo e todos. Contra os armadores de pesca industrial e contra os kapenteiros (pescadores do peixe kapenta) da Albufeira de Cahora Barra. Todos eles disputam a aplicação retroactiva no novo regulamento de pescas, que institui os novos Direitos de Pescas. É uma espécie de DUAT das pescas, que não reconhece os direitos adquiridos de quem está operando há mais de 30 anos. O Conselho Constitucional já deu seu parecer desfavorável contra essa aplicação retroativa, mas Maíta fez vista grossa. Sua saída do Governo é completamente inglória.

 

A nova titular do Mar e Águas Interiores e Pescas, Lídia de Fátima da Graça Cardoso, tem um ar de senioridade (e serenidade) suficientes para marcar sua governação com um estilo de diálogo e mais conciliatória com os principais “stakeholders” do sector. Mas, para isso, ela deve se precaver com a assessoria que vai lá a encontrar. Seu desafio maior é a pesca furtiva, nunca atacada de forma incisiva.

 

Já Carlos Zacarias é o “faxineiro do gás” que chega ao topo a carreira no MIREME (eles conhece os cantos da casa) e que, no leme do Instituto Nacional de Petróleos, esteve a frente dos mais recentes concursos de prospeção de petroleio e das intricadas negociações com os operadores do gás do Rovuma. Ele conhece toda a cadeia de valor da indústria. Sua escolha só poder ser por sugestão de Max Tonela. Isto significa que Tonela pode continuar a ter algum espaço de opinião sobre o sector, dentro do Conselho de Ministro, alargando sua margem de influência no processo decisório governamental, sobretudo em relação ao gás do Rovuma.

 

Em suma, esta remodelação veio em bom momento. O governo arregaça as mangas e recupera alguma adrenalina para os últimos dois anos do mandato de Nyusi, que sai reforçado. Fica um senão: ele não tocou nalguns ministros com demonstrada incompetência, como nos Turismo e Cultura, Transportes e Comunicações e Terra e Ambiente. Uma pena! (Marcelo Mosse)

quinta-feira, 03 março 2022 08:17

Max Tonela para Ministro da Economia e Finanças?

Eis a conjectura geral dos comentários que recebi logo após o anúncio da demissão de 6 ministros, 5 de sectores económicos, logo uma remodelação de fundo, que no essencial serve para recolocação das pedras e não é o afastamento por mau desempenho (Janfar Abdulai seria o primeiro da fila), como seria noutras democracias em que a responsabilização é um factor de melhoria da governação.

 

Consta que há quem pediu para sair (Carlos Mesquita), por razões pessoais. Seu contributo no relançamento da indústria é visível. Sua maior virtude é acarinhar iniciativas e ideias novas. Não aquele tipo de dirigente típico da casta libertadora, que não faz nem deixa fazer. É também provável que ele vá para o MIREME. Aquele Ministério precisa de dirigentes com senioridade quanto baste. Tirar Max Tonela para meter uma figura menor é meter àgua, todo o FIPAG junto.

 

Mas a grande novidade é a demissão de Max Tonela, a melhor pedra do Governo neste momento. Tonela arrumou as coisas do gás do Rovuma, pelo menos onde não foi entravado pela guerra, faz o pleno na eletrificação rural e na produção (Central Térmica de Temane) e relançou Mphanda Kuwa no meio de suspeições sobre ausência de mercado quando já há potenciais investidores.

 

Mais: colocou Moçambique no mercado mundial dos diamantes, com a adesão recente ao Processo de Kimberley. Max Tonela encaixa perfeitamente na ideia de recolocação de pedras. Seu desempenho é visível. A conjectura aponta-lhe para Ministro da Economia e Finanças. É uma pasta que lhe calha bem, dado a sua formação. Se isso acontecer, Tonela se tornará numa figura de referência para a Governação de Moçambique nos próximos 20/25 anos, por causa da bagagem acumulada nos sectores por onde tem passado, dando-lhe uma perspectiva holística sobre os grandes dossiers dos pais, os desafios que temos pela frente.

Há duas semanas, em Bruxelas, o Presidente Filipe Nyusi desferiu um profundo golpe na “mouche” dos que pretendem protelar a exploração do nosso gás do Rovuma. (Ele regressou, na semana passada, a Bruxelas para a cimeira União África/Europa). Há duas semanas, Nyusi reclamou o direito soberano de Moçambique decidir explorar o recurso, hoje e já. Foi um grande momento de lucidez do Presidente.

 

O terrorismo de armas em punho em Cabo Delgado é o grande empecilho contra o gás. O ataque a Palma no ano passado desvendou o objectivo terrorista de paralisar a exploração do gás em terra. A Total zarpou e todas as suas contratadas também. O consórcio MRVP (joint venture a ENI e Exxon) começa a despedir colaboradores e a Decisão Final de Investimento da Exxon adiada "sine die".

 

A TotalEnergies só regressará quando estiver tudo normalizado. Isso vai levar tempo. Ninguém sabe quando é que as armas se calarao em Cabo Delgado e a população deslocada reassentada de novo em suas terras.

 

Apesar do “Think Thank” ocidental enfatizar a natureza endógena do terrorismo de Cabo Delgado, ele tem uma forte carga ideológica externa, incluindo seu financiamento. Em Bruxelas, Nyusi teve encontros ao mais alto nível. E, no final de tudo, o Presidente lançou a tirada da soberania do gás. Para quem era o recado? Eis a questão.

 

A declaração de Nyusi em Bruxelas surgiu no actual contexto de debate sobre a neutralidade do carbono. A ladainha da energia limpa ganhou relevância na recente COP 26 de Glasgow, a Cimeira do Clima da ONU. Os arautos da emergência climática e da erradicação dos combustíveis fósseis barricaram-se contra o gás e o carvão. Se sua narrativa radical tivesse vingado no documento final, Moçambique seria um dos principais prejudicados.

 

Mas na COP de Glasgow acabou vingando uma moratória (a conferência adaptou a linguagem “redução gradual” (phasing down) em vez da radical “eliminação gradual” (phasing out), o que dá-nos alguns anos para continuarmos a explorar o carvão e o gás.

 

Ainda bem! Alias, abandonar os fósseis não será num piscar de olhos. E a TotalEnergies já demonstrou, logo depois da COP, compromissos crescentes nos fósseis, incluindo o Rovuma. Seja como for, no ocidente, o pensamento “mainstream” do debate ecológico mostra-se cada vez mais contra os fósseis e surgem, de vez em quando, “lobbies” contra a exploração do gás do Rovuma. Não sei se Nyusi esbarrou com isso em Bruxelas, mas em Glasgow foi patente uma clara demonstração de activismo anti-progresso, protagonizado pela organização Friends of Earth.

 

Com mentalidade colonial e prática demagógica, esta organização está lutando contra a exploração do gás do Rovuma. Intentou um processo judicial contra a decisão do Reino Unido de ajudar a financiar um projeto de gás de US$ 20 bilhões (S$ 27,3 bilhões), depois da agência UK Export Finance (UKEF) ter concordado em financiar mais de mil milhões de dólares dos 24 mil milhões de Gás Natural Líquido de Moçambique (GNL), da Total.

 

A acção já está a causar danos “reputacionais” ao Governo. É provável que altere alguma coisa nessa perspectiva de financiamento.

 

Esta corrente que se barrica contra o gás moçambicano não tem vergonha na cara. Durante décadas, a Europa teve o gás como a sua principal fonte de combustíveis e hoje continua à espera que o gigantesco gasoduto Nord Stream 2, que liga a Rússia e a Alemanha, seja concluído. 

 

Nunca ninguém se opôs ao Nord Stream 2, a não ser no quadro de eventuais sanções à Rússia no caso de uma invasão à Ucrânia. Nunca ninguém se opôs no quadro da neutralidade do carbono. A própria NGO, Friends of the Earth, nunca se opôs ao gás russo. Nunca! Ou seja, no ocidente estão todos quites! E, agora com a iminência da guerra, começam a fazer contas à vida, e o gás entra na equação. Sem o gás russo, a Europa mergulha numa crise profunda. 

 

Ou seja, o gás russo é vital para a Europa e o gás do Rovuma não pode ser explorado por causa da neutralidade do carbono! 

 

Não pode ser! Moçambique tem de lutar pela sua autodeterminação na exploração do seu gás. A declaração do Presidente Nyusi, há duas semanas, em Bruxelas, teve o tom enfático de como essa luta deve ser feita, pelo menos no plano discurso. Com garra e perspicácia! 

 

Em Doha, ontem, Nyusi retomou a toada, agora enfatizando a ideia de "energia de transição" e a exploração como factor de desenvolvimento, paz e estabilidade. Valeu! (Marcelo Mosse)

 

Declaração de interesse: autor é um dos membros fundadores da Justiça Ambiental (JA), organização parceira da Friends of the Earth. A JA partilha da visão da Friends of the Earth. O autor não!

Pág. 11 de 28