Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

terça-feira, 28 julho 2020 06:09

André Calengo: “Régulo” de Messumba explica o processo da reforma da terra em Moçambique

Na autoridade colonial em Moçambique, os régulos eram uma extensão do poder do Estado, eficaz nos seus propósitos, com certa capacidade repressiva. Eram os gestores da terra no nível mais inferior do Estado. A independência, alterou-lhes o “status quo”. Foram negligenciados por seu passado colaborativo com o colonialismo. Mais recentemente “reintegrados” como um instrumento de arremesso político do Estado.  

 

André Calengo é “régulo” herdeiro de Messumba, na região do lago Niassa.

 

Foi a pessoa escolhida pelo Governo para presidir a reforma da Lei da Terra. A escolha não decorre de nenhuma das situações anteriores. Calengo é um especialista na matéria. Ele explicou à “Carta”, em entrevista ao Coordenador Abilio Maolela, como vai feita a reforma da Lei da Terra.

 

Leia, a seguir, os excertos da conversa:

 

Quando é que inicia, efectivamente, o processo de auscultação pública para a revisão da Política Nacional de Terras?

 

O Presidente fez este apelo de participação de todos e o nosso papel, como Comissão, é atingir maior número possível de cidadãos e/ou grupos sociais de sectores a partir do seu local de residência, de trabalho e demais actividades. Nesta situação de “confinamento”, em que estamos, vamos ter algumas limitações. Por isso, estamos à espera de fazer isso, assim que as condições forem criadas. Portanto, se for em termos de auscultação, através de encontros, teremos de esperar. Mas a auscultação também deve ser feita através de outros meios, como é o caso dos meios de comunicação social (estamos a ir à rádio, à televisão, rádios comunitárias), assim como de plataformas digitais.

 

Pode explicar-nos porque o cidadão terá de ser consultado, tanto a nível da sua residência, assim como a nível do seu local de trabalho?

 

Por exemplo, no local de residência, referimo-nos às reuniões do bairro, onde podemos juntar dois a quatro quarteirões para nos receberem e discutirmos o assunto. Mas também queremos ouvir, por exemplo, docentes, jornalistas. Portanto, a este nível falamos de uma consulta no seu local de trabalho. Estes vários espaços têm, de algum modo, a ver com a questão da terra porque jornalistas, enquanto actores, discutem estas questões.

 

Quanto tempo irá durar o processo?

 

O processo foi pensado para durar um ano e meio [18 meses]. Por isso, temos todo o tempo para, no momento oportuno, começarmos a fazer as reuniões públicas.

 

Tendo em conta a sensibilidade do assunto, um ano e meio será suficiente para discutir, em toda a extensão do país, este assunto?

 

Tendo em conta a experiência, penso que sim. Este debate vem de há 10 anos. Desde a conferência comemorativa dos 10 anos da Lei de Terras, em 2007, que estas questões vêm sendo discutidas, por isso, nesta altura, as questões principais são mais ou menos conhecidas. O que precisamos de encontrar são as soluções e várias das opções possíveis já foram debatidas.

 

Acreditamos que é tempo suficiente para conduzirmos o processo. A Comissão é composta por 10 membros, mas não está a trabalhar sozinha. Está a criar uma rede de parceiros de auscultação, integrada por Organizações da Sociedade Civil [15] e, em cada província, pelo menos duas integram a rede. Também temos uma rede de parceiros para atingir sectores específicos, por exemplo, o MISA-Moçambique para dialogar com os jornalistas.

 

Portanto, são parceiros que têm a sua rede de contactos e seus grupos-alvos identificados. Por isso, essa rede permite-nos que, num espaço de três meses, de forma simultânea (se as condições melhorarem), possamos atingir vários grupos. Depois, sistematizamos os debates num período de dois a três meses e, num segundo momento, voltamos a realizar uma nova onda de auscultações públicas durante três meses. Portanto, criando condições logísticas, é possível realizar consultas em sítios críticos.

 

Será que a Comissão Técnica leva, para o terreno, algumas propostas de revisão ou apenas vai colher opiniões dos cidadãos?

 

Do discurso do Presidente pudemos retirar uma lista de questões e o papel da Comissão é detalhar esta lista e levá-la para o debate. Portanto, a Comissão vai para o debate já com uma lista de questões. Já identificamos temas e, em cada uma das temáticas, as questões que se colocam. Isto, na primeira fase. Na segunda fase ou ronda de consultas, a Comissão irá levar os ante-projectos da Política Nacional de Terras e da Lei de Terras elaborados, com base nos debates realizados na primeira fase.

 

O Presidente da República já avançou algumas premissas que poderão nortear os debates e uma delas é de que a terra continuará a ser propriedade do Estado. Gostávamos de saber se isto equivale a dizer que a mesma não será vendida ou haverá uma diferença?

 

Por acaso, esta é uma das questões que vai a debate. Há vários pronunciamentos, com alguns a dizer que é mesma coisa e outros a dizer que não é a mesma coisa. O que importa, agora, é encontrarmos um consenso em relação a este ponto.

 

Qual é o entendimento da Comissão?

 

A Comissão não pode ter uma interpretação. Ela deve captar as interpretações dos cidadãos e tentar sistematizar e transmitir isso ao Governo. O que irá fazer é dizer que, de acordo com aquilo que ouvimos, o que se propõe é isto e, no nosso ponto de vista, como técnicos, achamos que este é o caminho. Mas isto a partir das contribuições dos cidadãos.

 

A actual Política proíbe a venda da terra, mas na prática ela tem sido vendida...

 

Esta questão enquadra-se na temática da transmissibilidade da terra e, como deve lembrar-se, o Presidente levantou esta questão. Temos de discutir como é que resolvemos esta questão da transmissibilidade. O nosso papel é irmos escutar: existe uma prática e como ela se concilia com a Lei ou como a Lei se concilia com a prática. Então, eis a questão.

 

Mas o que estará a falhar neste momento? Será a lei ou a sua implementação? Recordo-me que, em 2017, a UNAC e o OMR organizaram debates, nos quais houve consenso de que havia uma fraca implementação deste instrumento legal.

 

Há um debate no sentido de que, em alguns aspectos da Lei, a interpretação que se tem da mesma, mesmo entre os juristas, não coincide. Há alguma divergência, o que, de per si, é uma razão para se debater e se encontrar uma interpretação consensual. Temos também outras áreas, em que a Lei pode estar clara, mas a prática é outra. Portanto, a pergunta é: vamos continuar a dizer uma coisa e a prática social ser outra? O que é que falta aqui? É a implementação? Este debate também é para melhorarmos a parte da implementação. Em algumas coisas, eventualmente, o debate vai dizer que o problema é da implementação e devemos melhorar neste e naquele aspecto. O debate não significa, necessariamente, revermos a Lei. O debate é também para reafirmarmos o nosso cometimento ou compromisso com a Lei.

 

O Chefe de Estado diz que a nova Política Nacional de Terra deve “preencher as actuais lacunas relacionadas à ligação entre o uso e aproveitamento de terra e o acesso aos recursos naturais e a sua exploração sustentável”. Até ao momento, o acesso aos recursos naturais tem-se mostrado um exercício conflituoso, por um lado, porque as comunidades entendem que estão a perder as suas terras a favor do capitalismo selvagem sem uma “compensação justa” e, por outro, pelo facto de não serem envolvidos na gestão destes. Como conciliar estes interesses?

 

Mais uma vez, esta é a missão da Comissão: ir auscultar. O Governo, tal como as organizações da sociedade civil e outros actores, quando se encontram no Fórum de Consulta de Terras, chegaram à conclusão de que alguma coisa não está certa. Há aqueles que defendem que a Lei deve ser revista e outros dizem que há alguns procedimentos que devem ser revistos. O importante, neste ponto do debate, é que há um reconhecimento claro do Governo de que esta situação não deve continuar; e que, doravante, com este exercício, possamos encontrar uma situação, onde cada projecto implementado represente uma oportunidade para a comunidade. Então, eu o convidaria que daqui a seis ou sete meses possamos sentar e vermos juntos o que está a ser proposto.

 

O Presidente da República pede também para que se clarifique o conceito de “comunidades locais”. Há quem entende que esta afirmação esteja relacionada ao facto de algumas Organizações da Sociedade Civil “assessorarem” comunidades, sobretudo as afectadas pela indústria extractiva. Será esta a interpretação correcta desta afirmação?

 

Acredito que, quando o Presidente diz que temos de clarificar (como país) o que é comunidade local, é que a nossa experiência mostra que não há convergência sobre o que é comunidade. Por exemplo, há que perceber como a comunidade se representa e/ou actua nas consultas comunitárias no exercício dos seus direitos. Há um artigo da Lei de Terras que diz que a questão da representação da comunidade será tratada em sede própria, porém, esta Lei nunca foi aprovada e já estamos há mais de 20 anos, desde que a Lei de Terras foi aprovada, e ainda não está esclarecida a questão da representação da comunidade. Outra questão que se coloca sempre que se fala sobre a comunidade, é do exercício de direito sobre parcelas de terras (o papel da comunidade em relação ao meu talhão), pois, há locais comuns. Aliás, o debate tem sido concentrado na comunidade rural, mas também temos de pensar na comunidade urbana. 

Sir Motors

Ler 4679 vezes