Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

sexta-feira, 03 julho 2020 06:07

Das injustiças às estórias de crueldade na Cadeia da Machava

Ao longo da Avenida Eduardo Mondlane, no município da Matola, província de Maputo, bem próximo ao mítico Estádio da Machava, local onde foi proclamada a independência nacional, um muro “normal” de cor branca (de quase 100 metros de comprimento), rodeado de casuarinas, chama a atenção de qualquer cidadão que daquele local passa. Não é para menos. É o muro que protege uma das maiores penitenciárias do país: o Estabelecimento Penitenciário Provincial de Maputo, a antiga Cadeia Central de Maputo, uma infra-estrutura de alta segurança, cujas grades, paredes, árvores e cerca escondem muitas estórias de crueldade humana, assim como de injustiça.

 

O edifício devia “hospedar” apenas 800 pessoas, mas alberga mais de 3.000 reclusos. Entre os detidos, as estórias variam de pavilhão para pavilhão. Parte dos reclusos reclama inocência, mas outros confessam ter cometido o crime de que são acusados.

 

Entre os dias 26 e 28 de Junho, “Carta” esteve por dentro daquele estabelecimento prisional (seu repórter foi detido ilegalmente no dia 25 de Junho) e partilha a rotina diária do local, desde a organização dos nove pavilhões, o tratamento a que são submetidos os reclusos e a conduta dos oficiais do Serviço Nacional Penitenciário (SERNAP).

 

Afinal, o que acontece?

 

Pela pouca experiência que tivemos no local, à chegada, os reclusos são conduzidos a uma sala, onde são recebidos pelos oficiais do SERNAP e pelos reclusos “mais velhos” da penitenciária, para efeitos de cadastro. De seguida, são conduzidos ao “Pavilhão 3” da penitenciária, onde está a “famosa esquadra”, como ficamos a saber. No referido local, os reclusos dormem feito “peixe” e não há espaço para ir fazer necessidades, sob pena de perder o lugar e passar a noite em pé. De acordo com as fontes, os reclusos só se “livram” deste sufoco após 45 dias.

 

Apesar de o mundo estar a enfrentar a pandemia do novo coronavírus, é difícil falar do distanciamento social na “esquadra” do Estabelecimento Penitenciário Provincial de Maputo, pois, a cada dia, o local recebe mais reclusos, alguns detidos por suposta desobediência ao Estado de Emergência. A sala não dispõe de ventilação adequada e o cheiro pode ser imaginado: nauseabundo, pois, o banho é um privilégio.

 

Num rápido levantamento feito pela nossa reportagem, apurámos que, anualmente, o Estado aloca milhões de dólares para garantir a alimentação dos reclusos daquele estabelecimento penitenciário, porém, o cardápio não passa de uma lástima: “feijoada” que para ter feijão (o grão) é uma bênção. 

 

Soubemos ainda da existência de um pavilhão específico para reclusos padecendo de tuberculose, HIV/SIDA e outras doenças crónicas, um local que alberga mais de 300 pessoas, para além dos 80 a 100, previamente estabelecidos. Alguns, afirmam as fontes, não são permitidos a seguir tratamento fora do estabelecimento penitenciário, mesmo estando em situação crítica.

 

Devido à superlotação, alguns reclusos asseguram que um a cinco reclusos morrem “do nada”, semanalmente, naquele local, porém, a administração da cadeia nada diz e muito menos faz.

 

Entretanto…

 

Não é só de más estórias que se constrói o dia-a-dia naquele estabelecimento penitenciário, havendo também algumas que merecem maior destaque. É o caso das aulas de agricultura, controlo emocional, música, língua inglesa e outras áreas do conhecimento humano. Porém, as actividades foram paralisadas devido à pandemia do novo coronavírus.

 

Tal como funciona a sociedade, naquele estabelecimento penitenciário existe uma hierarquia entre os reclusos, que começa do chefe do recinto penitenciário, seguindo-se o chefe de disciplina interna, o porta-voz dos reclusos, o chefe da acção social e cultura e os chefes dos pavilhões. Há, aliás, reclusos que fazem trabalho dos outros em troca de apoios simbólicos.

 

A conduta na ex-Cadeia Central de Maputo difere de cada pavilhão. Se num pavilhão, os reclusos passam a vida lendo, noutros se encontram reclusos toxicodependentes que, por meios clandestinos, investem na autodestruição. Um facto a realçar é a tentativa de fuga, que foi reportada ao nosso jornal durante aqueles dias. A mesma terminou com baleamento, porém, sem causar óbito.

 

Segundo contam, o referido recluso encontrava-se internado no posto de saúde local, depois de ter sido agredido pelos oficiais da penitenciária, após a primeira tentativa de fuga. Entretanto, na madrugada do dia 28 de Junho (domingo), asseguram as fontes, o mesmo recluso “tirou” as algemas, quebrou o ventilador e tentou subir o muro de vedação, tendo sido alvejado pelos seguranças.

 

No Estabelecimento Penitenciário Provincial de Maputo, as estórias de vida se cruzam. Se, por um lado, existem detidos esquecidos pelo sistema de justiça, por outro, há aqueles que recolheram àquele local por afrontar algumas figuras de “proa”; ou que roubaram uma garrafa de vinho no sector de trabalho. Há também estórias de irmandade, mas existem também estórias de maldade entre os reclusos. (O.O.)

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