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quarta-feira, 03 junho 2020 04:56

As sementes do Wahabismo – rumo a um estado islamista em Cabo Delgado?

(...)Verificou-se num tribunal de Pemba, no decorrer do julgamento de um islamista capturado, que vários moçambicanos receberam treino militar num campo no leste do Congo dirigido pelas FDA. Esta organização, liderada sobretudo por dissidentes ugandeses que lutam contra o presidente Museveni, é uma força possante e calejada pelo combate, que tem uma interpretação radical e violenta das escrituras do Islão e procura estabelecer uma ligação com movimentos jihadistas como o ISIS ou a Al Qaeda (Fahey 2015; Congo Research Group, 2018).

 

Operam dentro e fora da parte ocidental da República Democrática do Congo, onde dão formação militar aos seus próprios combatentes e a combatentes estrangeiros, incluindo jovens moçambicanos. O recente estudo de conceituados académicos ligados ao IESE (Habibe et al., 2019) demonstra inequivocamente que existem jovens muçulmanos inspirados pela ideologia wahabi que foram doutrinados e receberam treino militar no país e no estrangeiro, também nos campos de treino do leste do Congo.

 

A sua ligação operacional ao ISIS e à ISCAP tem sido seriamente posta em causa por vários investigadores académicos (Swart, 2018; Opperman, 2019), pelo menos em 2018 e 2019. Habibe et al. (2019) dizem que, entre os que entrevistaram para o seu estudo, o ISIS era praticamente desconhecido. Será que o aumento da capacidade de combate dos insurgentes que tem sido ultimamente observado e o facto de empunharem a bandeira negra do ISIS quando atacam ou ocupam uma aldeia ou cidade indiciam que o ISIS/ISCAP se apoderou da insurreição de Cabo Delgado?

 

E, se for esse o caso, que sabemos nós dos motivos e causas directas desta conjuntura potencialmente crítica? Autores como Morier-Genoud (2018) e Postings (2019) têm mais do que apenas indícios circunstanciais para sustentar a percepção dessa apropriação? Esta opinião é também partilhada e propagada por assessores de segurança ligados a empresas e instituições de segurança privadas ligadas à Guerra contra o Terror levada a cabo pelos EUA ou ao combate ao extremismo violento, como é actualmente denominado.

 

No entanto, as fotografias apresentadas como prova de um ataque numa certa aldeia foram tiradas em ocasiões diferentes e em locais diferentes, e o rastreio da origem da maior parte das provas apresentadas pelos proponentes da teoria da ofensiva jihadista, tanto em Moçambique como no estrangeiro, conduz sempre a muito poucas fontes associadas ao combate ao extremismo violento executado pelos EUA.

 

Um dos proponentes da teoria da ofensiva jihadista total é Nuno Rogeiro, jornalista português e especialista em geopolítica, que tem defendido uma missão militar liderada pela União Europeia em Cabo Delgado. Nos cenários que propõe, sugere que Pemba, Mocímboa, Quissanga e Palma poderiam ser as cidades, equivalentes a Mossul, Raqqa, Idlib ou Alepo na Síria e no Iraque, que serão alvo do ISIS através da sua ramificação moçambicana do Shabab. É com certeza verdade que as sementes do wahabismo lançadas em Cabo Delgado, sobretudo nos anos 80, pelo Conselho Islâmico de Moçambique (CISLAMO) e pelos seus líderes, frutificaram sob a forma de Ansar al-Sunnah ou Ahl al Sunna, em detrimento do Sufismo (Bonate, 2007).

 

E não pode haver dúvidas de que o Ahlu Sunnah Waj-Jama’a e o al-Sunnah wa Jamaah estudados por Habibe et al. (2019) encontraram terreno wahabi fértil, que, juntamente com os wahabis que regressavam de estudos na Arábia Saudita e no Sudão, e a doutrinação por sacerdotes radicais, como o falecido queniano Abubacar Rogo, ajudaram a estabelecer o que se poderia chamar uma seita – que, segundo Habibe et al. (2019), não era inicialmente militarizada. Embora tenham declarado seus inimigos o estado e os muçulmanos não wahabitas, a sua idoneidade e coerência como grupo religioso militarizado, bem como a sua ligação ao ISIS, foram questionadas pelos especialistas no assunto (Bonate, 2018; Swart, 2018; Opperman, 2019).

 

Num seminário organizado pelo IESE em Dezembro de 2019, o autor de uma obra muito elogiada sobre o islamismo violento radical africano, o norueguês Stig Hansen (2019), também duvidou da capacidade actual do ISIS/ISCAP de projectar significativamente o seu poder até Cabo Delgado. Parece faltar-lhes um enraizamento na cultura local, um critério complementar ao do estabelecimento de redes e comunicação globais da ideologia jihadista. Outros estudiosos e especialistas em Cabo Delgado, como Paolo Israel, têm, contudo, uma opinião diferente, sugerindo que os recentes ataques em Cabo Delgado são claramente atribuíveis ao ISIS/ISCAP.18 Os cépticos do envolvimento do ISCAP argumentam que seitas islamistas militantes de Cabo Delgado podem (ainda) não conseguir revelar o grau de coerência social, política e militar que seria necessário para levar a bom termo operações militares consecutivas e obter o apoio continuado dos líderes religiosos.

 

E faltar-lhes-ia um programa político, incluindo cobrança de impostos e serviços sociais, que tem sido uma característica típica do ISIS no Iraque e na Síria, e do al-Shabaab na Somália (Gari, 2018). O facto de os atacantes de Mocímboa, em Março de 2020, terem tentado conquistar «os corações e as mentes» parece contradizer a prática dos anteriores atacantes, que maltrataram população, decapitando pessoas aparentemente cuidadosamente seleccionadas numa aldeia e incendiando certas casas.

 

Concluímos desta observação que os insurgentes reviram agora as suas tácticas anteriores ou devemos partir do princípio de que há mais que um único grupo armado a operar em Cabo Delgado, um grupo que decapita as pessoas e outro que procura chegar ao coração e à mente da população? É uma possibilidade remota, dado que alguns dos recentes atacantes de Mocímboa da Praia foram identificados pela população como tendo estado entre os responsáveis pelo primeiro ataque, em Outubro de 2017.19

 

Independentemente das dúvidas expressas nesta secção e da controversa discussão do assunto por especialistas, não podemos descartar um cenário que tem como cerne uma crescente aliança de islamistas armados locais com o ISIS e as FDA, com estas últimas a apropriarem-se gradualmente do que seria uma guerra jihadista em Cabo Delgado. A análise da génese da insurreição islamista militante em Cabo Delgado sugere esta conclusão (Matsinhe & Valoi, 2019). (Francisco Almeida dos Santos, in CMI Insight Maio 2020, Guerra no Norte de Moçambique, uma Região Rica em Recursos Naturais – Seis Cenários/Excerto)

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