O conto “Nhinguitimo” faz parte da primeira obra literária de Luís Bernardo Honwana, Nós Matamos o Cão Tinhoso, publicado, pela primeira vez, em 1964. Edições subsequentes aconteceram aqui e no mundo. Esta integra o cânone curricular de ensino da língua portuguesa, nas escolas secundárias moçambicanas. Tem sido referência obrigatória para diferentes gerações do pós-independência.
Nhinguitimo ou vento sul, na língua ronga, são ventos que antecipam a chegada do Verão. Ocorrem entre os meses de Agosto e Setembro. Velozes e poeirentos, eles simulam um falso Outono, desconforto generalizado e inúmeras alergias. Necessários, porém, indesejados.
Os ventos representam o ar em movimento, resultante das variações da pressão atmosférica entre as diferentes regiões de maior pressão, para as de menor pressão. Como qualquer fenómeno da natureza, os povos sempre encontram justificações e analogias para explicar o seu surgimento. Assim, estes ventos têm sido sujeitos à interpretação popular, bem como a mitos e crenças.
Nos dias que correm, e considerando a propagação da COVID 19, Nhinguitimo pode ser, analogamente, comparado à propagação do coronavírus. Aliás, Sara Jona Laisse, no livro “Entre margens” considera que o coronavírus pode bem ser comparado aos vários cães tinhosos que semeiam luto e desgraça.
Licínio Azevedo, conceituado realizador nacional, dos mais galardoados que a indústria cinematográfica nacional, alguma vez, conheceu, decidiu adoptar este conto para filme. Uma curta metragem de um clássico moçambicano que, faz tempo, era merecedor de um filme. Vários filmes. O filme será rodado este semestre, 2021. Uma produção em tempos pandémicos.
O personagem principal é Alexandre Vírgula Oito Massinga. Jovem nativo que trabalhava como empregado dos agricultores comerciais brancos. Vive cultivando, tal como seus concidadãos, as machambas dos seus patrões. Mas, ele tem, também, a sua própria. Reduzidas proporções, com milho como substrato, porém, assegurava uma safra segura e razoável para o sustento familiar.
Esta prática tipificava as relações do campesinato no período colonial. Estas pequenas machambas serviam para o auto-sustento, mas, igualmente, para que os agregados familiares pagassem os tributos. Tal como acontecia com as machambas dos outros trabalhadores agrícolas locais, a machamba de Vírgula Oito estava excluída das extensas áreas demarcadas pelos colonos portugueses.
Vírgula Oito via a possibilidade de sua pequena plantação obter uma colheita satisfatória. Ele se guiava pelo provérbio que dizia “o que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento invisível”. O seu vento ele enxergava, com certeza que nenhum Nhinguitimo prejudicaria sua colheita.
Essa certeza derivava do facto de sua pequena machamba estar localizada do lado oposto do rio, que dividia a machamba do seu patrão. Esta localização era beneficiada pelas árvores que faziam a pequena barreira de segurança e protegeriam a sua área. Assim, o Nhinguitimo somente, atingia as plantações dos brancos.
A narrativa de Luís Bernardo Honwana que integrou o “African Writers Series”, nos anos 60, é marcada pela consciencialização da exploração, pela revolta e, também, por algum comodismo e medo. O norte de Moçambique já vivia a luta armada de libertação nacional que atiçava a consciência de sectores importantes da sociedade.
Alexandre Vírgula Oito vislumbrava, não apenas essa boa colheita, mas, o sonho de, um dia, se transformar em patrão, adquirindo alfaias agrícolas, aumentando as áreas de cultivo e, enfim, perspectivando seu casamento e a melhoria das suas condições de vida.
Sucedeu, porém, que a sua pequena propriedade passou a ser cobiçada pelo seu patrão. Não tardou e Vírgula Oito foi expulso das suas terras, com toda a sua família. Desfaziam-se, assim, seus sonhos e as inflacionadas intenções de prosperidades. Esta anexação gerou um certo borbulhando. Os bares fizeram, deste assunto, a conversa do momento. Um dos bares servia de ponto de encontro para os homens da vila, os brancos.
Até o administrador ficou ao corrente das desavenças. Solicitou justificação aos seus conterrâneos. Os argumentos não se fizeram esperar. Doía o coração dos brancos ver terras tão férteis sendo desperdiçadas pelos negros. Com as verdades manipuladas e as pretensões desfeitas, a clarividência do Administrador antevia período conturbado. O seu sexto sentido era infalível.
Os brancos se respaldavam no argumento da capacidade e suas incomparáveis habilidades para produzir e administrar terras. Aos negros competia trabalhar como empregados dos brancos. Aquelas terras confiscadas estavam desperdiçadas e improdutivas. Eles dariam um novo destino.
Luís Bernardo Honwana é pródigo, nesta narrativa, em rever expressões de pretensões das suas gentes, os momentos conturbados e os sinais de injustiça. Alias, este conto representava já uma fase efectiva da literatura que romperia com essa visão cultural eurocêntrica. O autor se esforçou para redefinir o “ser moçambicano” denunciando a segregação e exploração pela qual passam os nativos.
Vírgula Oito, nosso personagem, em função das reclamações, foi rotulado de louco e subversivo. Recusava a exploração e a humilhação a que havia sido submetido. Não aceitou ser um mero objecto manipulado. Porém, ele não logrou estruturar essa revolta colectiva. Assumiu o ónus para si próprio. Seus companheiros defendiam que nada poderia ser feito, os brancos continuariam roubando as terras e, ninguém, poderia dizer nem fazer nada.
Vírgula Oito, banhado de ódio, propalou a sua revolta. Incitava seus amigos à revolta. A passividade conduziria a todos à pobreza. Ele mesmo, até então passivo, mudara de postura ante as exploração e humilhação sofridas. Da raiva e revolta, Vírgula Oito consome o crime. No calor das discussões com seus companheiros, ele mata um deles.
O seu patrão entra, novamente, em cena. Faz um apelo inusitado aos restantes agricultores nativos. Pede que eliminem Vírgula Oito, antes que ele os matasse a todos. Vai mais longe e pede, inclusivamente, que se peguem em armas, para abater o criminoso, antes que todos fossem mortos. Se isso não acontecesse, algo de mais grave, aconteceria a vila.
“Nhinguitimo”, denunciou a exploração que serviu de estímulo à revolução. Mas o Nhinguitimo continua um vento presente. Não dá tréguas. Somos assolados por muitos ventos e cães tinhosos. Covid-19 e a instabilidade devastam esta paz tão duramente conquistada. Licínio Azevedo quer retomar ao Nhinguitimo de outros tempos.