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quinta-feira, 09 abril 2020 06:07

A longa espera do madjerman

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Aqui ao lado da minha casa mora um homem despromovido a categoria de alcoólatra. Um indivíduo que passa a vida no “Senta-baixo”, onde não pára de contar as mesmas histórias de uma Alemanha Democrática que agora só existe na memória. Repete-as de tal forma que já ninguém as presta atenção. Mas ao que parece, a vida do meu vizinho só fez sentido uma vez, quando ele esteve na Europa nunca antes sonhada, amealhando a provisão para os tempos de estiagem que provavelmente viria enfrentar em Moçambique, sua mátria.

 

Lembro-me dele quando acabava de chegar, nos princípios da década de noventa, cheio de vigor,  inesperadamente repatriado sem nada no regaço, a não ser a moto da marca MZ, uma mulher loira rendida aos encantos do negro, e uns poucos marcos (antiga moeda alemã) que passou a esbanjar em esbórnias sem fim, se calhar sem saber que toda aquela exuberância era falsa, e que a loirinha não iria suportar viver em condições de miséria. Aliás, ele próprio  não percebeu de imediato que tinha regressado  a miserabilidade, por isso ainda andou por aí, espalhando um charme de nada.

 

Tinham-lhe dito que regressaria ao trabalho e ao frio da Europa, logo que passasse a tempestada provocada pela derrocada do muro de Berlim, e isso dava-lhe alento. Podia gastar tudo, pois, as mãos para trabalhar estarão sempre prontas para repor o que se tirou do celeiro. Sou jovem e forte, dizia ele, e tenho o amor da minha namorada. Com a força que ela me dá, nada vai abalar a minha alma, nem o meu corpo, nem os meus sonhos.

 

Porém o que o meu vizinho não sabia, é que o seu destino estava nas mãos de outras pessoas. Algumas delas sem honestidade. Capazes, por isso mesmo, de apagar em definitivo o sol que começou a descer para o poente, no dia em que os barcos de cabotagem atracaram e de lá foram descarregadas as motos e as geleiras e pouco mais, e algum dinheiro no bolso, que nem era nada. Ele não previu a desgraça que lhe esperava, nem pressentiu que todo o amor florindo a sua volta, corporizado pela mulher loira que trazia nos braços, iria cair no escuro. Ela capitulou e deixou o madjerman no meio do oceano, como uma bóia a deriva.

 

Passam mais de trinta anos, e o meu vizinho continua na longa espera de nada. Aliás, pode ser que esteja a espera de partir profundamente magoado, rumo ao desconhecido, pois já percebeu que da Alemanha, provavelmente não haverá mais sinal. Nem do governo. O Próprio Jehová, segundo diz este homem que vai minguando a cada gole de aguardente, não tem certeza de que algum dia cairão nas nossas mãos, as notas do sangue que vertemos.  E se Deus de Jacob e de David e de Abrahama não tem certeza sobre o nosso futuro, isso significa que o diabo já tomou conta de tudo”.

 

Na verdade o meu vizinho faz-me lembrar um piloto de guerra que, impedido de voar por lhe terem amputado um pé como consequência dos nefastos efeitos da diabetes melittus, ia todos os dias à base para ver os pássaros metálicos em pleno gozo de liberdade. No ar. Sentia como se fosse ele a pilotar, voando como águia, que voa com as suas próprias asas. É como o meu vizinho, fala constantemente de Dresden onde viveu e trabalhou, como se ainda estivesse lá. Está louco!

 

Basta uma “garrafinha” para toda a Alemanha descer-lhe a memória. Conta com entusiasmo as mesmas histórias já deturpadas pelo tempo e pelo álcool, e ninguém lhe escuta. Mesmo assim não pára, é como se estivesse no palanque, discursando para uma multidão só existente na sua imaginação. E ele tem uma necessidade urgente de delirar, de uivar como um cão selvagem abandonado e despojado de todos os seus haveres, na floresta de pedras pontiagudas. Removeram-lhe o coração!

Sir Motors

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