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sexta-feira, 01 março 2019 07:10

Entre “vientes” e nativos: histórias de vida e luta pela terra das gentes de Namanhumbir

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O que procurava eu entre as terras de solo encarnado de Namanhumbir? Não é por acaso que se criam afectos com o campo de pesquisa. Estas coisas constroem-se devagar e silenciosamente. Lembro-me dos restaurantes Bissmilah dos somalis, da mesa cheia de lupas dos tailandeses intermediários da venda informal de pedras preciosas, do amigo que me ouvia e explicava os novos valores e códigos dos nativos, até da marca de cerveja tanzaniana, que acompanharam a decisão de escrever estas experiências de trabalho de campo, que decidi chamar de outras verdades sobrehistórias de vida e luta pela terra das gentes de Namanhumbir.

 

De baixo de uma sombra reflectida por um largo caule de embondeiro, em época de verão, embora com chuvas intermitentes, as temperaturas são tão altas que chegam a ensopar a camisa. Acabava de retornar a Montepuez, para as minhas férias do natal e final do ano. Minha experiência de convívio com os nativos de Montepuez, me faz lembrar das festas do mwali que acontecem nesta época do ano. Decidi arrumar uma pequena mochila, e saí em direcção à estação de chapa 100, para iniciar uma viagem até o Posto Administrativo de Namanhumbir.

 

Entrei no chapa, e fui me sentar no último banco, onde já estavam mais 3 homens. Alguns minutos depois, foram entrando vários outros passageiros, e a dado momento, o cobrador deu ordem ao motorista que o chapa estava cheio, e por isso, podíamos iniciar a viagem. Suspirei de alívio, porque com o calor que se fazia sentir naquela manhã, num carro sem ar-condicionado, vinham-me lembranças de tantas outras vezes, que tive de esperar dentro do mini-bus mais de uma hora, até que ele tivesse um número suficiente de passageiros para partir.

 

O teor das conversas dentro do minibusaté entre desconhecidos, jovens e velhos, homens e mulheres, continua o mesmo que ouvia, desde o primeiro momento que desembarquei em Montepuez em 2012: os rubis de Namanhumbir. Nem todos são garimpeiros ou dependam da actividade mineira. Mas o rubi, toca de todas as formas com as suas vidas. A exploração dessamilagrosa pedra, aumentou o número de pessoas com poder de compra, então os preços de produtos de primeira necessidade subiram quase de noite para o dia. - “Até o leite infantil subiu o preço”,comentavam duas senhoras sentadas no banco à minha frente.

 

Montepuez foi em tempos, um dos maiores produtores algodão (o chamado ouro branco) durante o império colonial português). Essa produção, continua sendo feita até hoje pela empresa Plexus Lda. Contudo, hoje o nome de Montepuez, só tem sentido quando se liga aos rubis, essas milagrosas pedras. Aliás, me dizem vários jovens, que foram trabalhadores da empresa algodoeira, e rescindiram seus contratos para ir trabalhar no garimpo, porque estavam cansados de “depender do fim do mês”. Uma frase que expressa não apenas a contagem de tempo para receber um salário, mas também, a imponência de aliar-se a outras formas de rendimentos, pois “depende do fim do mês”, aquele que trabalha para uma empresa, tem um chefe, um horário de entrada e saída estipulados num contracto a ser cumprido com rigor. O imediatismo em ganhos monetários que o garimpo de rubis propicia, faz que muitos jovens abandonem empresas e passem a dedicar-se em actividades que não tenham estas obrigações laborais de dependência e hierarquizadas.

 

Novas histórias para mim, saem pela boca dos passageiros ao meu lado. Contam-se novidades sobre o actual cenário de exploração artesanal do rubi. Falam sobre a actual e rigorosa protecção da área de exploração da Empresa Montepuez Ruby Mining Lda. Ouço novidades dos garimpeiros presos e outros mortos pela Unidade de Intervenção Rápida, quando apanhados em áreas em áreas concessionadas a empresa mineradora.

 

Enquanto o motorista iniciava a marcha, fazendo manobras ainda no interior da Estação de Transportes de Montepuez, pergunta ao seu cobrador, de quem era a mochila que estava no banco de frente ao seu lado, visto que ninguém estava lá sentado.

 

-“É daquele viente da Padaria. Disse que ia comprar umas coisas no mercado, e que podemos passar levá-lo em frente à sua Padaria, estará lá a nossa espera”, disse o cobrador com tom negociador ao seu motorista.

 

Pensamentos curiosos avivavam na minha mente: como é possível, um passageiro de alto nível de confiança, que exige que o transporte público, carregado com outros mais de quinze passageiros, passe o levar na sua padaria, é apenas categorizado pelo termo “viente” não pode ser chamado pelo próprio nome?

 

Embora com vontade de questionar, saber mais das histórias que ouvia, lembrei-me da metodológica advertência que o mestre Pierre Clastres enunciava em “Crônicas dos índios Guayaki”: “nada pode substituir a observação directa: nem questionário por mais preciso que seja, nem narrativa de informante qualquer que seja sua fidelidade. Pois é frequentemente sob a inocência de um gesto semi-esboçado, de uma palavra subitamente dita, que se dissimula a singularidade fugitiva do sentido, que se abriga a luz onde o todo resto se aviva”. Então, decido mesmo permanecer em silêncio, e seguir a viagem entre nativos e “vientes” de Namanhumbir (X).

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