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quarta-feira, 11 agosto 2021 06:01

Jéssica e Válter Siba Siba, 20 anos depois: como aceitar a morte de um pai descrita como “atirado das escadas do 14º andar do edifício do seu próprio local de trabalho”?

A morte do nosso Pai despertou em nós um sentimento equiparado ao desaguar do Mar: Ele nunca realmente desagua. Sempre que se aproxima o dia 11 de Agosto recordamo-nos, em silêncio, que há 20 anos, num sábado, logo cedo pela manhã, cruzamos com ele no corredor da casa enquanto caminhávamos descalços do quarto à casa de banho; ele prestes a sair, a caminho do serviço.

 

Tão alto que era, abaixou-se, e de cócoras, com o seu icónico bigode, despediu-se de nós com alguns beijinhos picantes, que nos faziam cócegas, na promessa de à tarde irmos todos ao aniversário da nossa prima; já depois de questionado continuamente o porquê de ir ao serviço num sábado.

 

Poderá ter sido aquela a mais longa manhã de sábado que alguma vez tivemos. A dada altura chegaram à nossa casa as tias, irmãs do Pai. E continuavam a chegar mais pessoas, incluindo primos e a vizinha da porta ao lado, que fez questão de gerir o fluxo dos que vinham manifestar seu pesar. Estávamos cada vez mais entusiasmados com a chegada de visitas. Supúnhamos que elas se vinham juntar a nós para irmos à festa naquela tarde.

 

Mas, subitamente, por volta das 10:30h - 11:15h, nossa Mãe põe-se aos berros ao telemóvel, chamando pelo nome do Pai: “Siba! Siba!”. Com uma voz trémula e de agonia. Muito preocupados, porém sem tempo para reagir, fomos todos (os mais novos) levados às pressas para a casa da vizinha. De lá, podíamos ver no hall do prédio a cara da nossa vizinha coberta de imparáveis lágrimas, que tentava esconder, enxaguando-as com as mãos e antebraços.

 

Naquele momento iniciava a mais confusa tarde de sempre: nós em casa dos vizinhos a assistir bonecos animados e a jogar GAME BOY®, sempre na promessa de irmos à festa “daqui a pouco, quando [o] Pai chegar!”. A promessa nunca foi cumprida. Passamos o fim-de-semana e a semana seguinte dormindo em casa dos nossos tios, assim como dos padrinhos e dos primos mais próximos.

 

No regresso à casa, quando abriram a porta de frente, deparamo-nos com um monte de visitas, incluindo o nosso tio, irmão mais novo do nosso Pai. Perguntamos-lhe: "-Onde está [o] Pai?”. Sem resposta alguma, fomos levados às pressas para um dos nossos quartos, daquela vez desarrumado e com vários colchões. Lá se encontravam as nossas avós, tias e mães sentadas, todas de capulanas. Aquilo que parecia ser o fim de um momento de férias forçadas; depois de um momento de luz, vivemos o início de um pesadelo, um pesadelo sem sono.

 

Recebendo um abraço colectivo de uma das nossas avós, fomos notificados da morte do Pai. Choramos! Em demasia. Mas não terminamos devidamente nosso choro, pois, poucos minutos depois, o tio levou-nos a tomar sorvetes na baixa da cidade, algures perto do antigo serviço do Pai. Recordamo-nos de um espaço aconchegante e colorido, com estruturas de Pinguins, embora não tirássemos os olhos de uma TV pendurada à parede, onde passava constantemente a notícia da morte do nosso Pai. Não nos recordamos de termos apreciado aquele sorvete, mas vêm-nos a memória vaga de um saboroso hamburger do takeaway Papu. E nessa noite, novamente passada em casa de uma Tia, tivemos o primeiro momento livre para chorar em silêncio, sem luz nenhuma e muito menos a distração do GAME BOY®.

 

Recordamo-nos também de no dia seguinte irmos a um famoso alfaiate na Av. Mártires da Machava, mesmo próximo à intersecção com a Av. Eduardo Mondlane. O nosso primeiro vestuário formal, assim como a nossa primeira cerimónia fúnebre e visita ao cemitério foi para o funeral do nosso próprio Pai, e não para um casamento ou festa do dia das bruxas, como acontece à maior parte de crianças.

 

A mistura de indivíduos e emoções para duas crianças de oito e seis anos de idade, respectivamente, que haviam crescido num círculo relativamente fechado, foi complicada. Desde cumprimentar tios e avós que nunca havíamos conhecido, à longa viagem ao cemitério com um motorista numa limusine, e até ao discurso do Presidente Joaquim Chissano, recordamo-nos de um sentimento forçado de despedida.

 

Bastante forçado porque o nosso Pai não era só nosso, mas o herói na nossa família: imensamente adorado por todos os tios e tias, que eram quase todos mais velhos. Ele era estiloso, elegante, charmoso e saudável. Um exemplo de sucesso já naquela altura, ainda muito jovem em relação a muitos tios-amigos que o rodeavam. Apesar de mais novo, quando falava ninguém abria a boca e ninguém se esquecia das suas citações e/ou brindes em Espanhol, nos aniversários. Nada dentro do nosso conhecimento poderia acontecer ao nosso grandioso Pai naquela altura; certamente nada que subitamente o tirasse a vida.

 

Naquela idade, ainda que no início do novo milênio, não havíamos sido preparados ou educados para encarar a morte, quanto menos a do nosso Pai. E encará-la forçadamente, tendo de observar por contínuas horas o corpo do nosso Pai aprumado e sem vida num caixão, numa igreja que mais parecia um auditório para acomodar a multidão de pessoas que o conheciam e para quem era importante, após contínuas borrifadas do perfume Dior Fahrenheit e um beijinho na testa, para nós apavorante, senão bizarro. No funeral do nosso Pai não sentimos saudades dele como na semana anterior. Sentimo-nos demasiadamente amedrontados, confusos e imaturos para interpretar a situação.

 

 

Vinte anos depois desse golpe, permanecem a angústia da sua perda, o desrespeito do seu serviço ao Estado e a desonra da proeminente figura que era, assassinado pela mesma injustiça que se faz sentir, incessante, em variadas frequências, todos os dias: desde as falsas promessas feitas no próprio funeral; as retardadas investigações pelo Ministério Público e Tribunal Supremo, tanto no dia da morte do nosso Pai, como em 2009, quando surgiram alguns indiciados; contínuas notícias e esperanças apresentadas, já desde o julgamento do caso do assassinato do jornalista Carlos Cardoso; e de lá para cá o contínuo enriquecimento de vários dirigentes superiores do Estado incluindo suas famílias e afiliados, bem como filhos que conhecemos e connosco estudaram; tudo às custas do suor e sangue do nosso Pai.

 

  •          Vale mencionar as demais consequências causadas à nossa harmonia familiar, à afectividade da nossa Mãe, que nunca voltou a ser a mesma, às nossas vidas pessoais, por um crime de tamanha dimensão, nunca minimamente resolvido?
  •          Como se digere em silêncio o assassinato de um Pai descrito publicamente como tendo sido “atirado das escadas do décimo quarto andar do edifício do seu próprio local de trabalho”?
  •          Como se encara a bárbara possibilidade publicamente proferida como a de um potencial suicídio no local de trabalho numa manhã de sábado, na ausência de qualquer risco que o justificasse no mesmo espaço?
  •          Há quantos anos não se menciona sequer na imprensa o aniversário da morte do nosso Pai?
  •          Quem vai continuar a direccionar actuações de natureza artística no local e dia da sua morte, para “tapar o sol com a peneira”?

 

Quem se vai responsabilizar pela morte do nosso Pai? O Banco Central, cujos dirigentes na altura atribuíram ao nosso Pai, antigo Director da Supervisão Bancária, o cargo de presidente interino do Banco Austral, aos 33 anos de idade, apesar de haver na altura profissionais com maior experiência no ramo? A parcial ou totalidade de mais de mil e duzentas pessoas singulares e colectivas que tinham empréstimos vencidos no antigo Banco Austral? Alguma entidade individual ou colectiva que tenha prestado algum serviço ao mesmo banco na altura? Algum responsável pelo pré-existente sistema e equipa de segurança no dia e local de assassinato? O Ministério Público ou o Tribunal Supremo? Algum juiz ou ministro? Algum responsável da PIC? A AMECON? O Centro de Integridade Pública? O Banco Mundial? Ou alguém da Casa Militar?

 

Esta conversa é tão delicada que nunca foi devidamente iniciada na nossa presença dentro ou fora de casa, tanto entre irmãos ou mãe e filhos, bem como familiares, amigos ou conhecidos. Porém, é um dos, senão o mais odioso crime debatido em baixo tom de voz ou monólogo em Moçambique.

 

Infelizmente, 20 anos após a morte do nosso Pai, o "Porquê?" sempre foi evidente, o "Como?" parcialmente, e, em várias versões similares conhecidas por todos, mas resta-nos o "Quem? (Plural)". 20 anos depois não celebramos as belas memórias criadas pela sua presença e das suas conquistas enquanto vivo, no entanto, deixamos acima abertas estas perguntas. Numa dita democracia onde progressivamente desonramos os nossos tronos e pilares, já desde os ex-presidentes Eduardo Mondlane e Samora Moisés Machel, quem nos resta para liderar, trazer justiça e novos horizontes a esta sociedade?

 

Cada um de nós próprios, até que a imensidão do Mar finalmente desague.

 

Nota do Editor: Jessica e Valter Siba Siba Macuacua são filhos do antigo quadro do Banco de Moçambique, assassinado em 2001, quando tentava recuperar o crédito malparado do  Banco Austral. Seu assassinato nunca mais foi clarificado. Entre os devedores estavam figuras sonantes das elites políticas. O banco foi depois saneado pelo Estado com dinheiro dos doadores, e vendido ao ABSA da RAS. Na altura, o Governador do BM, que mandou Siba Siba ir gerir interinamente o Banco Austral, era Adriano Maleiane, hoje Ministro da Economia  e Finanças. Luísa Diogo era a Ministra do Plano e Finanças. Ela foi decisiva no saneamento do banco, depois de uma auditoria forense, forçada pelos doadores, e que apurou um quadro de gestão danosa no Austral, nunca levado a tribunal. Diogo é hoje PCA do ABSA. (MM)

 

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