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domingo, 21 janeiro 2024 12:30

CARNEIRO GONÇALVES

Caminhai célere, ó jovem povo do Quiteve, e vinde ouvir a história de Malidza, que morreu de amor. Uma grande ternura agasalhava-lhe o corpo de ébano (que ela protegia para Kilomko, o guerreiro) e punha nos seus olhos cintilações habitadas pelos génios antigos das florestas. O colo guardava a macia tepidez das sombras e era tão silenciosamente como a luz que Malidza percorria as veredas, as savanas. Requestavam-na os mais expeditos; transformou em temeridade a audácia dos mais valentes. Caíram alguns no calor das refregas, peito trespassado pela lança dos guerreiros de Maruça. Havia nas suas gargalhadas duas coisas: a alegria da brisa das alvoradas que despenteia as árvores e, também das árvores, a frescura da seiva.

 

Um dia apareceu na aldeia o nhamessoro para invocar Zúzu, o espírito das águas. Todas as moças acabadas de donzelar na última lua, espantadas ainda pelo prodígio grandioso de um pouco de sangue entre as coxas, dançavam então o seu espanto. Dois embondeiros soberanos, tão cheios de rumores eucarísticos como dois altares, cruzavam as ramagens por cima do terreiro lançando sobre as moças uma bênção de sombra. Malidza, como as outras, dançava. Dançava e ria. Kilomko, de longe, espreitava-lhe o corpo a requebrar-se nos espasmos da dança. Os seus feitos de guerra enchiam de espanto as aringas. Pela noite adiante, quando as famílias se acocoravam em torno das fogueiras, os mais velhos evocavam Kilomko e os mais novos tremiam de uma admiração sagrada.”

 

Carneiro Gonçalves (Contos e Lendas)

 

Este belíssimo texto tem oito brevíssimos parágrafos e é uma pungente e trágica história de amor. Kilomko encontrou Malidza, em certa madrugada, regressava ele dos seus combates. Diante do seu olhar, caiu-lhe a lança da sua mão invencível, pela primeira vez. Esperava desde então o fim das guerras para a desposar. Mas, um dia, o “nhamessoro” apareceu na aldeia para invocar o espírito das águas. No momento da dádiva, o mago poderia escolher a jovem que o impressionasse mais. Essa escolha recaiu sobre Malidza.

 

Mais não conto. A lenda está no livro “Contos e Lendas” ou em antologias de contos moçambicanos. O seu autor: Carneiro Gonçalves.

 

António Carneiro Gonçalves, nascido a 21 de Junho de 1941, morreu a 20 Janeiro de 1974, faz hoje 50 anos, num inexplicável acidente de viação, aos 32 anos, deixando não apenas este texto, que iria integrar o livro póstumo “Contos e Lendas”, editado pela mão do poeta Sebastião Alba (pseudónimo de Dinis Albano Carneiro Gonçalves), seu irmão, mas também contos que dariam para um outro livro e um romance escrito e reescrito. Era jornalista, deveria integrar, naquele ano, a redacção do “Expresso”, em Lisboa, viajava para a então Lourenço Marques, hoje Maputo, onde iria apanhar o avião para Lisboa, ia também no carro o poeta Julius Kazembe.

 

O prefácio do livro é um dilacerado elogio de irmão para irmão. Escreve Sebastião Alba: “Na noite de 20 de Janeiro de 1974, meu irmão ia ao volante, ao largo das estrelas. Seu companheiro de viagem ter-lhe-ia dito: “Carneiro Gonçalves, olha que noite!”; e o carro em que seguia despistava-se a vinte quilómetros de Vilanculos; ele morreria hora e meia depois, no posto sanitário dum areal nocturno. Tinha trinta e dois anos e – rigorosamente – o que sonhou. A mim, apenas quinze meses mais velho do que ele, fora destinado o definitivo infortúnio de escrever estas linhas.”

 

O texto de Alba é escrito vinte dias depois da tragédia e é o prólogo do livro que ele organizou. Traz duas lendas, entre as quais “Malidza”, contos e o fragmento de uma novela. Um ano antes, na revista “Tempo”, no suplemento literário dirigido por Rui Knopfli, que o entrevistara, o autor de “Contos e Lendas” deixaria a sua biografia sintética e magistralmente grafada: “Tenho trinta e um anos, vi a luz do dia em Braga, mas nasci em Tete. Faço questão de conhecer o Zambeze. Com os contos que tenho poderia pelo menos publicar dois livros. Lá virá o dia. Ensaiei um romance que reescrevi já algumas vezes. Ontem mesmo ia na primeira página...”

 

“Malidza” é um dos textos da minha mitologia literária. Acompanha-me desde o secundário. Nele fui sufragar o seu riquíssimo vocabulário, as expressões linguísticas, as metáforas. Um único parágrafo daria para discussão de uma aula inteira. O dicionário para encontrar o significado das palavras. O exercício da sinonímia. A riqueza vocabular, a riqueza semântica, a expressiva capacidade de contar, em pouco mais de três páginas, uma belíssima história seriam, para mim, uma grande lição de escrita.

 

Aprendi ainda, com este texto, que a narrativa ou a prosa não eram expressões despidas de poesia. Antes pelo contrário. A bela prosa era também a expressão cabal de boa poesia. O ritmo das frases. As suas metáforas. As suas imagens. O seu encadeamento. As suas invocações. A escolha das palavras. As palavras certas na frase. As palavras escolhidas com desvelo. As palavras ditas com enlevo. As palavras escritas com inequívoca beleza. A musicalidade das palavras.

 

Em 2005, foi publicado em Portugal o volume “A Escrita de Anton”, de Carneiro Gonçalves (organização e estudo introdutório de Calane da Silva e notas biobliográficas de António Sopa), que recolhe os textos que haviam sido dados à estampa na recolha “Contos e Lendas”. Acrescenta-se-lhe uma lenda pelo menos, alguns contos, crónicas e um punhado de textos puramente jornalísticos. Li o longo texto do Calane da Silva, polvilhado de muita informação, que ajudam a compor o perfil deste escritor desaparecido precocemente. Chamavam-no os mais próximos de Anton, o nome do seu primeiro contista predileto, Anton Tchekov.

 

Rui Knopfli num texto remoto dizia-nos: “Carneiro Gonçalves comete às letras moçambicanas o ânimo e a frescura do seu discurso lesto e elegante, de um rigor que não pactua com fáceis efeitos de embelezamento, antes se cinge aos calculados riscos de uma disciplina que é, simultaneamente, a da cultura e a de uma ática simplicidade. (...) Razão, talvez, por que a sua prosa desencadeia em nós a fragrância de um vinho novo e generoso, acidulado e nobre.”

 

Sebastião Alba aduziria na sua lancinante evocação: “Meu irmão caminhava em sombra; caminharia sem se voltar até ao fim das nossas vidas. E, afinal, era o que a todos nos restava dele. Não estou certo de que tenha feito uma boa escolha, pois de quase nada estou seguro. Como sucede com muitos de nós, ele acreditava que aquilo a que se chama a visão de um artista é a sua primeira imagem poética do mundo, essa que ao longo da vida se busca fixar num fundo de luz permanente. Vinte dias após a morte dele, não posso ainda impedir-me de esbarrar no que se me afigura uma evidência pavorosa: a obra desde já irrealizável e a que, algum dia, lograsse acabar, tiveram para ele um mesmo e último sentido.”

 

Carneiro Gonçalves tinha uma estranha predileção pela lua. A lua ou o luar são títulos de seus contos ou escritos, atravessam as suas histórias. Naquela noite de 20 de Janeiro de 1974, ele ia ao volante e terá dito o seu companheiro de viagem: “Olha que noite! Que luar tão lindo!”. Carneiro Gonçalves, ao que parece, fascinado com o luar, despistou-se entregue a essa visão sublime que o prendeu ali para sempre.

 

No texto de Alba, redigido próximo da morte do irmão, não aparece a referência ao luar: “Que luar tão lindo!” Calane da Silva acrescenta-lhe essa frase e diz que a confirmou de um amigo indefectível de Carneiro Gonçalves, João Schwalbach. Sou amigo, há mais de trinta anos, do Julius Kazembe. Sei que ele ia com o Carneiro Gonçalves naquela noite, falámos eventualmente de Carneiro Gonçalves, mas sempre evitei abordar a história e os pormenores de um dos trágicos acidentes que marcam a história literária de Moçambique. Hoje, para além de “Malidza”, que recitei ao largo desta noite de lua envolta numa perseverante neblina, voltei a pensar no meu amigo Julius Kazembe e no trágico destino do Carneiro Gonçalves. Um dos melhores entre nós. Passam 50 anos sobre a sua morte e uma nuvem espessa de desmemória e deslembrança cobre-lhe o nome e a obra. O que, de todo, não é estranho entre nós, onde avulta o olvido e a omissão, o descaso e o desapreço.

 

Cidade do Cabo, 20 de Janeiro de 2024

É possível que o grande roubo das eleições autárquicas de 11 de outubro nunca tenha sido escondido? Será que o Diretor Eleitoral Celso Correia e os chefes da Frelimo queriam que a fraude fosse amplamente conhecida, e que os tribunais não interviessem, para mostrar aos moçambicanos que o voto nunca iria desalojar a Frelimo?

 

Os moçambicanos vão estar entre os 2 mil milhões de pessoas no mundo com direito de voto este ano, e estão a ser levantadas questões sobre a democracia em muitos países, dos Estados Unidos ao Bangladesh. Escrevendo no The Guardian (Londres, 3 de janeiro), Rafael Behr observa que "os tiranos não manipulam as eleições para enganar os seus súbditos e fazê-los pensar que podem escolher o seu governante. Fazem-no para demonstrar a futilidade de esperar mudanças. É uma afirmação de poder através da desmoralização. Os comícios coreografados, os rivais fantoches e as assembleias de voto da aldeia Potemkin não são falsificações subtis concebidas para serem confundidas com o artigo genuíno. São deliberadamente grosseiros - um mimetismo zombeteiro que esfrega o nariz das pessoas no artifício da política. O objetivo é desacreditar a ideia de que as eleições fazem a diferença." 

 

Isto soa muito a Moçambique e às suas eleições municipais do ano passado - desacreditando intencionalmente a ideia de que as eleições fazem a diferença.

 

A Frelimo reconhece que ainda não tem o poder total. A Comissão Nacional de Eleições deixou o MDM ganhar na Beira, e o Conselho Constitucional deu Quelimane e Chiure à Renamo. Em todos os três locais havia uma ameaça de violência grave e em todos eles a Frelimo tinha-se contentado em permitir o governo da oposição. 

 

A preocupação com Chiure foi suficiente para enviar o comandante geral da polícia, Bernadino Rafael, para a cidade depois de a polícia ter morto um manifestante; Chuire fica em Cabo Delgado e os insurgentes têm algum apoio em Chiure.

 

Mas para demonstrar o seu poder, a Frelimo tinha de ganhar na capital e na província de Nampula, onde Celso Correia era também o chefe eleitoral provincial. A Renamo tinha provas de que tinha ganho em Maputo e na Matola, mas os tribunais ignoraram-nas; as manifestações foram pacíficas, toleradas pela polícia e ignoradas. Mas em Nampula e Nacala Porto, onde a Renamo provavelmente também ganhou, a polícia disparou contra os manifestantes, matando pelo menos cinco.

 

Os "erros" eleitorais maciços não foram desleixo ou má conduta de funcionários de baixo nível. A fraude foi planeada de forma centralizada. O trabalho árduo dos jornalistas moçambicanos para expor a fraude não foi impedido porque agradou aos chefes da Frelimo que queriam que os moçambicanos soubessem que as eleições não podem fazer a diferença. 

 

Como o artigo do The Guardian argumentou, a ideia em muitas autocracias não é enganar as pessoas para que pensem que as urnas podem fazer a mudança, mas exatamente o contrário, mostrar-lhes que não podem. E era esse o objetivo da Frelimo em Moçambique. (Joseph Hanlon)

quarta-feira, 06 dezembro 2023 12:59

VIRGÍLIO DE LEMOS

Quando o infortúnio lhe sobreveio, aos 84 anos, a 6 de Dezembro de 2013, nos arredores de Paris, avultavam, a favor de França, na biografia do poeta Virgílio de Lemos, 50 anos do seu porfiado exílio. Nascera na Ilha do Ibo, a 29 de Novembro de 1929, e pertencera ao escol dos poetas que se afirmaram nos anos ulteriores à Segunda Guerra Mundial em Moçambique, alguns dos quais, como Noémia de Sousa, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Knopfli, Orlando Mendes ou Rui Nogar, são responsáveis por intuir e instituir aquilo seria uma poesia de raiz marcadamente moçambicana. Apesar disso, o seu percurso e a sua poesia fazem-se por meios e características diversas daqueles.

 

Fátima Mendonça, num instigante ensaio de 1987 que estabelece uma periodização da literatura moçambicana, recolhido em Literatura Moçambicana – A História e as Escritas (1989), identifica-lhe proximidades ao surrealismo. Américo Nunes, num texto que antecede A Dimensão do Desejo (2009), fala de “uma experiência simultaneamente lúdica e trágica, erótica e profundamente desassossegada” da sua poesia: “Virgílio de Lemos é um lírico desdobrado de um metafísico.” Reconhece-lhe a “militância” anti-colonial e anti-fascista, mas “não é isso que traduz a essência da sua poesia”. Creio que Poemas do Tempo Presente (1960) não declina um espírito irreverente, contudo, não prossegue o que uma poesia como a de José Craveirinha ou Noémia de Sousa propugnam.

 

Craveirinha, numa remota entrevista a Michel Laban (Moçambique – Encontro com Escritores, I vol, 1998), não tergiversou quanto a dúvidas que chegou a ter sobre o papel e a personagem de Virgílio de Lemos: “Eram simplesmente dúvidas: de que lado é que o tipo está? E depois aquela coisa de ele pedir-me originais para pôr no jornal da Mocidade Portuguesa…” Aliás, Craveirinha declina quando este lhe propõe colaboração nas folhas “Msaho”, em 1952. Queria ver primeiro, contudo, “Msaho” soçobrou no primeiro número. Colaboram Noémia de Sousa, Reinaldo Ferreira ou Ruy Guerra. Reinaldo pertencia, com Domingos de Azevedo e Virgílio, à coordenação da publicação. Da sua amizade com Reinaldo Ferreira, da sua cumplicidade, há um testemunho afectivo e poético de Virgílio.

 

Virgílio de Lemos foi preso duas vezes. Foi absolvido no caso da “capulana vermelha e verde” e condenado a 16 meses (o tempo que expendera na prisão) no caso de subversão. O seu ideário (chamou-lhe “crioulismo” ou “barroco estético dos moçambicanos”) passava, a seu ver, por uma amálgama cultural e uma vivência urbana que incluía “brancos, mistos, indianos, chineses e os pretos que dormiam no fundo dos quintais”. Casou com a artista Bertina Lopes (pai português e mãe moçambicana) e teve dois filhos. Contudo, em 1963, desfeito o laço matrimonial e cansado dos imbróglios com os esbirros e as impugnações destes, parte para o exílio. A África do Sul, onde estudara e vivera algum tempo, não lhe parece lugar auspicioso para tal desiderato. Aterra em Paris em Dezembro desse ano longínquo.

 

Michel Laban fez-lhe a pergunta que se impunha: “Poderia supor-se que, saindo tu da cadeia, te juntasses ao movimento nacionalista organizado…” A resposta de Virgílio de Lemos é honesta: “Cheguei aqui e fiz um balanço para mim. Verifiquei que acima das ideias do movimento de libertação nacionalista, eu devia valorizar a minha própria liberdade de pensamento e de acção, embora denunciando o colonialismo, o salazarismo.” Nada mais lídimo. Quando, por vezes, se fazem exabundantes afirmações sobre o dissentimento de Virgílio de Lemos, creio que vale lembrar a sua liberdade como poeta que lhe divisa a franquia. E respeitar isso. Por conseguinte, a este respeito, nada de pregões.

 

Era adepto do “barroco estético”, uma demanda que se inseria numa busca de antropofagia cultural baseada numa mestiçagem identitária, o tal crioulismo que ele sempre procurou. No frontispício do livro Negra Azul (1999), que é uma espécie poética de “Cahier d´um retour au pays natal” (Aimé Césaire dixit), fica explicitado: “retratos antigos de Lourenço Marques de um poeta barroco.”

 

Se é facto que retoma versos da sua dissensão (“bayete-bayete-bayete / à Kapulana vermelha e verde, / se subsistirem no tempo / capulanas de várias cores”), o que temos neste “regresso” é uma poesia sobre uma “cidade, na alucinada posse / que supera o irreal”, na “babilónia de gozos / frágeis luzes e amores”, ou “na solidão que o Infinito / transporta”, “o despertar do fogo e da orgia”, de quem “viveu teu corpo / por dentro” –  “a erótica dimensão da noite”.

 

“O coração da cidade bate

nesta Baixa plural

Polana e Malhanga, Mafalala

e Malanga,

Zélias e Detinhas, Júlias

de grandes decotes e brincos.”

 

Ou ainda estes versos: “Olhos / de teu corpo / que deslizam dentro / da cidade / viagens pelas ancas / pelas pernas / fogos da cripta / que subvertem / o desejo.” É o retorno ao “mais feminino pôr-de-sol da minha infância”: “minhas mãos entre teus seios / tuas mãos em meus infernos / devaneios, girassóis.” Há, nesta poesia, de Negra Azul, essa “temporalidade sem tempo”, esse “espanto”, “como se adivinhasse as coisas / ávido de liberdade, corpo interior solto, sereno / face à morte, seio, exuberância, gozo em mim dos deslimites”.

 

É essa a ideia com que ficarei da sua poesia inicial, de um certo exotismo e de uma ideia erotizante de uma realidade muito mais problemática, complexa e inquietante. Provavelmente, uma ideia inexacta ou imperfeita. No livro de homenagem ao seu amigo de geração, o grande poeta Reinaldo Ferreira, Virgílio de Lemos é mais metafísico e estabelece um vasto diálogo com poetas importantes na sua formação e afirmação. Com Reinaldo e na companhia do psiquiatra Fernando Ferreira liam poetas como Rainer Maria Rilke. Mas também Goethe (Wherter), Joyce ou Proust.  

 

“Senta-te aqui Ricardo Reis entra neste jogo

e charla de café, ajuda-nos a irmos mais longe,

superar sonhos gregos e persas, e atravessar

gentes e línguas de oceanos, portos e ilhas.”

 

Este poema parece denunciar a sua ideia de “barroco estético” e aquilo que então Virgílio prossegue como ideário poético. Cito ainda do mesmo poema:

 

“Rangel meio chinês e grego, africano tal

os Nicolaus, Rui Guerra e Zé, afro-alentejanos

Cabo-Verdes e Algarves, Carlos Maria e

eu, Virgílio, vindos da malandragem, libertinos.”

 

Virgílio de Lemos irá escrever no fim do texto: “nós que vadiamos na descontracção de surrealismos, / somos lusismos, cubismos e dadaísmos das artes.” Fernando Pessoa, disse-o, mas também Cesário Verde, Sá Carneiro, Padre António Vieira, Guerra Junqueiro, Jorge de Sena, Camões – safra dos portugueses –, os brasileiros Manuel Bandeira, Cecília Meireles ou João Cabral de Melo Neto, ou poetas como Cavafy, Borges, Mallarmé ou T. S. Eliot fazem a estiva da sua busca. Mas também a música, a pintura, a poesia, a língua. E sempre a presença de Reinaldo Ferreira.

 

Durban, Lisboa, Paris, Cidade do México, Alexandria, Ibo e Zanzibar. Cidades, ilhas, destinos da sua poesia, da sua metafísica e do seu incessante desassossego. Mas sobretudo esse mito chamado Ilha de Moçambique. Chega à ilha pela primeira vez em 1952, na companhia de Gilberto Freyre, com quem discute uma identidade culturalmente mestiça, crioula, apontando-lhe imperfeições no seu luso-tropicalismo.

 

“A cultura específica das ilhas é herança barroca”, declarará mais tarde. Ilha de Alberto de Lacerda (onde nasceu e escreverá versos iridescentes) e de Rui Knopfli (autor dessa belíssima A Ilha de Próspero), ilha que será de Luís Carlos Patraquim ou Eduardo White, anos mais tarde, ilha que fora de Camões ou Jorge de Sena, quatro séculos depois, sempre numa invenção poética, numa celebração da língua e da sua mitologia de exílio.

 

“ilha

que dorme na utopia

pródigo mito

da poesia.”

 

Estes versos estelares pertencem a Ilha de Moçambique – A língua é o exílio do que sonhas (1999). Ali, onde evoca “os deuses do mar à minha volta”, naquele lugar onde não foge do erotismo (“teu corpo é bruma” ou “sou erotismo / na vulcânica geografia”), onde vive um “incandescente êxtase”, uma “insondável magia”:

 

“Eu sou pássaro migrante,

das ilhas-mulheres singulares

nenhum corpo igual a outro corpo,

face ao mar o irreal navega.”

 

Ali onde o poeta viaja e se declara: “sou português swahili / sou celta judeu / não confúcio mas buda”, sempre “no erotismo entre oceanos e / palavras”, “na pátria do desejo”. Na mesma ilha onde homenageia Camões e Pessoa nestes belos versos:

 

“A ilha de amores é a casa dos mortos, a nau

habitada de infernos, tumultos, espantos, a gruta

dos fogos da alma e obsessões do corpo, culto

das rotas interiores. Solidão, medo e fim, erras

na bruma, sol e sedas do teu corpo, silêncios

e gritos, inventário de mitos, a beleza em busca

de si mesma, confiante, inquieta, fulgurante e neutra

interrogando-se acoplada ao destino em ti.”

 

Canto desse “mar tão exoticamente azul” e dessa “sensual sensação na sedução azul”, nessa “própria luz feita desejo”. “Nasceste do sonho e pelo sonho morrerás / na revolução que tu próprio estrangulaste. / Foste a Europa, o Império, o mundo foste / na mais erótica irisão do que inventaste.”

 

Se há uma poesia do Índico, se há uma tradição poética desse destino Oriental, desse Moçambique e desse Oceano, dessa viagem que inclui espaços e ilhas, destinos e espantos, que o poeta exprime nas suas várias línguas, que o poeta sagra e consagra em francês, inglês ou em português, nessa busca assombrada do mar e da sua fortuna – Para fazer um mar (2001) – , é nessa mesma poesia que Virgílio de Lemos faz a sua perquirição, na sua “osmose”, “no diálogo com os mortos”, na “luz oriental da volúpia”. Mas também o inventário das suas ilhas, dos seus mitos e duendes, da sua Ibo matricial, mas tudo o que “antropofagicamente” desencadeia a sua nostalgia poética, passional e iminentemente índica.

 

Essa nostalgia poética exprime-se e imprime-se luminosamente nesse Eroticus Moçambicanus (1999) demandado no Brasil e pelo entusiasmo de Carmen Lúcia Tindó. Ou em: Lisboa, oculto amor (2000). Do seu longo e obstinado exílio francês: Object à trouver (1988), L´obscene pensée d´Alice (1989) e L´aveugle et l´absurde (1990), livros que suspendem quase trinta anos de silêncio. Duarte Galvão, Bruno dos Reis ou Li Lee Yang, numa heterónima e numa incessante inventiva e busca de si próprio, “a cor, o traço, o som e o gesto”, da sua liberdade e da sua poesia, da sua alquimia, da sua rebeldia, da sua paixão, da sua aventura, do seu gozo e da sua solidão. “O existir feito / deserto e / caos”.

 

“Serei em tudo “barroco estético” ou nada.

Na fragilidade de palavras e silêncios,

Serei espaços de deslocação,

desconstrução, desenraizamento,

universalidade no singular e plural,

respiração no seio da tragédia

ficção e sonho.”

(Virgílio de Lemos, A Dimensão do Desejo)  

 

KaMpfumo, 6 de Dezembro de 2023

terça-feira, 21 novembro 2023 07:10

EDUARDO WHITE, 60 ANOS, escreve Nelson Saúte

“porque cedo me deram a poesia, essa voz cândida, funda, pela qual empobreço escrevendo versos”

 

Eduardo White (Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza)

 

Eduardo White foi, provavelmente, entre os poetas da minha geração, aquele que levou ao extremo o ideário da poesia – da verdade, da liberdade, da justiça e do entendimento – e aquele que viveu ao limite a ideia romântica de ser poeta. Era talentosíssimo, o mais talentoso dos poetas que gravitaram à volta da “Charrua” e que fizeram dos anos 80 o arrimo da sua poesia, da sua rebeldia e da sua afirmação. Era um vulcão em permanente erupção. Um poeta empolgadíssimo que punha nas palavras o acento da sua intrépida paixão pela vida, o seu amor proclamado pela mulher, pela viagem, pelo Índico, pelo Oriente. Mas também poesia sublinhada (ou sublimada) pelos seus fantasmas, as suas aflições ou os seus tormentos.

 

Indubitavelmente, o mais talentoso, o mais instigante, o mais inventivo, o mais enérgico, o mais fecundo entre todos nós. Era também luminosamente obscuro. Ou obscuramente luminoso. Escreveu hinos, versos, epifanias. Foi visitado pelos deuses. Testemunho disso: as inspirações, as visões, as centelhas. Escreveu imenso. Trabalhou duramente. Era também um obstinado esteta. Um artífice da palavra. Era fervoroso, vibrante, arrebatado. Poderia ser, ao mesmo tempo, obcecado, truculento, feroz. Escreveu soberbamente. Era um poeta encantado pela língua, pela poesia, pelo destino e pela loucura de ser poeta. Viveu em permanente sobressalto. A sua poesia era um sobressalto continuado. Era lírico, engajadamente lírico. Os problemas do seu tempo e da sociedade não lhe eram alheios, antes pelo contrário. Era um poeta do amor que não virava costas à realidade social. Não suportava as desigualdades, aviltava a mediocridade. Cauterizou sempre a mediocridade e foi cortante com a mediania que trespassa o devir moçambicano.

 

Eduardo White fez da poesia um acto de combate. Um acto de rebeldia. Um acto de liberdade. Ele propugnava a liberdade livre. Um poeta tem de ser isso mesmo: um homem livre. Livre diante das palavras e do seu tempo, e dos homens e do seu tempo. A liberdade poética de Eduardo White está na origem de algumas das mais belas páginas da nossa lírica. Inscreve-se entre os que estão no cume dessa invenção e dessa aventura de ser moçambicano. Mas era, simultaneamente, um grande poeta da língua portuguesa.

 

A sua vastíssima obra iniciou-se com um livro que foi uma pedrada no charco. Amar sobre o Índico, editado em 1984 pela Associação dos Escritores, tinha o autor 21 anos, em que escreve “Felizes os homens / que cantam o amor. // A eles a vontade do inexplicável / e a forma dúbia dos oceanos”. Aqui parece produzir-se um ideário e um programa. A esta distância, estes versos parecem pacíficos. No entanto, nos anos em que foram escritos, em que deram corpo, voz e rosto a um poeta (Eduardo White), não poderiam ser mais resolutos. Vivíamos os tempos da revolução e numa circunstância em que os seus prosélitos não anteviam outra possibilidade senão os amanhãs que cantam.

 

White e a sua geração denegaram a incumbência de cantar a revolução, ou até a luta armada. Não se assumiram ufanos, nem fizeram da Pátria um destino ou uma desinência, mas sim a poesia e a liberdade do indivíduo num tempo e num contexto histórico em que o assomo colectivo e colectivista não admitia nenhuma contradita. Escrever sobre o amor era, por assim dizer, uma sedição.

 

O seu segundo livro decorre de uma contingência: o hediondo massacre de Homoíne, em 18 de Julho de 1987. A nossa amnésia condescende até com a barbárie. Somos um povo resignado. Num magro volume, de um poema em oito partes, justamente intitulado Homoíne (1987), Eduardo White recusa o anátema: “Os nossos mortos são muitos, / são muitos os nossos mortos / dentro das valas comuns” e este seu gesto é (também) a negação do “pássaro lento do esquecimento” dessa “morte explodindo como um tiro” e desse “impiedoso silêncio”: “Mas o que os mortos não sabem nem imaginam, / é que no coração dos que ficam, no coração dos vivos / inteiros permanecem e decididos VIVEM.”

 

O terceiro livro, obra do seu amadurecimento, surge em 1989: O País de Mim. O amor, de novo: “Eu já amava e escrevia versos / nas paredes do útero da minha mãe”: “Assume o amor como um ofício / onde tens que te esmerar”. A mulher (“MULHER! / Essa palavra que só secreta / cabe na boca / e que apetece tê-la, constantemente, / a meio da língua”). O corpo (“Teu corpo é o país dos sabores” ou “teu corpo essa casa feliz”). As palavras: “Não gosto do pudor de certas palavras”. O Índico: “És o Índico – numa tarde quente de Janeiro”. A morte. “Quando morrer / quero fazê-lo sem rumor algum, / sem ninguém que me chore / ou a quem doa”.

 

A morte, depois de Homoíne, irrompe brutalmente na poesia de Eduardo White. Neste livro, é vista como “nocturna ave”. A ave e o voo serão sintagmas importantes da obra subsequente. Mas a morte aqui é impressiva: “Diário é também / o ofício da morte neste país / essa gangrena de fome e de sede / e de desentendimento”. Quase quatro décadas depois, estes versos permanecem dilacerantes, verdadeiros e actuais. Perturbadores, avassaladores. Diria que este livro – O País de Mim – está nessa bissectriz entre o amor e a morte: “E aqui estamos, amor, vivos / na nossa morte”.

 

Em 1992, Eduardo White publica Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave. Retorna à prosa poética que publicara esparsamente nos meados dos anos 80. Na “Gazeta” da ínclita Tempo haveria de publicar, naqueles ominosos anos, um belíssimo texto inédito em livro: “O país de Inês” (1986). No tempo em que lhe era hodierno, o poeta apostrofa: “Eu não posso morrer qualquer dia com todo este desconhecimento sobre as aves. Peço licença à poesia. Quero-as voando em meus versos e também um mar e dois ou três navios que se achem por perto que desmereça toda a beleza disso deixai que escreva pois a vontade prevalece e queima”.

 

A morte ronda este livro. Mas também a fuga à realidade obsidiante. “Podemos sonhar sem limites mesmo que a insónia nos castigue”. A vontade da escrita: “Uma mão relampeja na casa da escrita.” “Escrever é uma droga antiga, / uma bebedeira que queima com lentidão / a cabeça, / traz as luzes desde as vísceras, / o sangue a ferver nas vias tubulantes, / traz a natureza estimulante das paisagens / que temos dentro.” A loucura de ser poeta (“Dá-me aquela secreta mão de Deus” ou “este desejo irrevogável do meu poeta”). O dom do voo e a oferenda da escrita: “Voar é uma dádiva da poesia.”

 

A recusa da morte. A morte, sempre. A morte interior. Ou, se quisermos, o milagre da vida, em anteposição. “Voar é não deixar morrer a música, a beleza, o mundo e é também fazer por escrever tudo isso”. Os assombros do poeta. Os pavores do poeta. Os seus desesperados. Os seus “sonhos terríveis”. Os espantos do poeta.

 

Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza (1996) traz os sinais da viagem ao Oriente: “Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que ao Norte e na Ilha traz um amante inconfortado.” Mas é também o lugar “onde igualmente possa chorar a minha trágica fatalidade de poeta”. Ou o lugar da beleza, da poesia e da mulher: “tu que és uma mulher e explodes pela beleza de ser isso.”

 

Eduardo White: “Todos os dias enlouqueço de uma loucura qualquer, de qualquer sentido doente que sobre o meu sangue se curva. Todos os dias tenho perguntas para tudo e não tenho respostas nenhumas e a minha mente, que é carnal de medo e memória sem propósito, não descansa.” Ou: “A vida que é um suposto mal entendido como, aliás, eu próprio.” Ou ainda: “Estou cansado de trazer este peso comigo, este abismo para onde me atiro”. Isto é terrível. Mas o que vem a seguir é ainda mais assombroso: “Por isso é que deixei que os versos me desvanecessem a juventude até onde podiam”.

 

White: “Por isso é que não existo como um número e o Estado não me dá importância devida. Por isso é que sou liberal só nas coisas em que tenho que ser liberal. Por isso é que a polícia me vigia. Por isso é que não há tranquilidade para quem se põe a escrever. E por isso também é que pergunto porque escrevo e que sentido é que terá a escrita dessa maneira que ninguém a lê. Por isso é que as respostas não existem e eu estou aqui a matar-me sem razão aparente para o fazer”.

 

A resposta a esta tremenda questão encontrá-la-emos no livro ulteriorJanela para Oriente (1999) – “Escrever é uma razão forte, é uma audácia profunda”, “Não quero outra coisa senão este mistério em que me invento”. O poeta estabelece nesta obra outro cume da sua invenção. “Para que precisa um poeta de glória quando não pode escrever?” Este é um belíssimo hino à condição do Índico e da vontade do Oriente. Mas também um solilóquio de um poeta aturdido com o destino do mundo e do homem. Um homem solitário no interior da poesia. “Mas eu não suporto a solidão, reconheço-o , não suportar estar só com tanta clareza, com tanta consciência.”. Um poeta que reconhece a realidade contraditória em que vive. “No fundo o Oriente é o desejo transbordante de tão súbito desespero, uma fuga ao enclausuramento.” “O Oriente é também uma ambição”: “A janela do quarto de onde escrevo é de um esplendor que dá vontade de saltar por ela”.

 

A poesia de Eduardo White torna-se mais ontológica, reflexiva, doutrinária e questionadora. Em Dormir com Deus e Um Navio na Língua (2001) permanecem as inquietações: “Vivo intensamente todos os dias esse milagre de não parecer estranho o que se parece estranho em mim, porque posso perguntá-lo, tentar conhecê-lo porque posso traduzi-lo traduzindo-me”. A língua é também um território de pertença: “Preciso dela, pois é tudo o que tenho como ferramenta e como trabalho, como propósito e intuição. Escrevo para que se entenda”. White amou implacavelmente a língua, a sua língua. Amou como poucos a língua portuguesa: “Doer-me-ia se tivesse que viver exilado dela, morreria se a ela fosse impossível voltar.” Não há muitos como ele, entre nós, que se tenham elevado tão assim no canto desta língua: “Tem uma origem divina esta língua quando a pronuncio e me embevece, um bálsamo pra o que choro”. Isto é de uma beleza comovedora. Isto é pungente. Pungentemente belo.

 

Seguem-se-lhe, na estante de autor, As Falas de Escorpião (2002), O Manual das Mãos (2004), O Homem a Sombra e a Flor e Algumas Cartas do Interior (2004), Até Amanhã Coração (2007), A Fuga e a Húmida Escrita do Amor (2008), Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva (2009), A Mecânica Lunar e a Escrita Desassossegada (2012), O Poeta Diarista e os Ascetas Desiluminados (2012) e o epílogo Bom dia, Dia! (2014). De permeio, O Libreto da Miséria (2010). As mesmas inquietações. O mesmo destino de ser poeta. “Um poeta não é para se perceber, é para sentir-se” (O Manual das Mãos). A aspereza desse fatalismo. “Aqui ninguém liga peva à poesia. Nem à poesia e nem a outra coisa nenhuma que cheire a cultura.” Canta o destino do poeta: “Nos poetas cada palavra tem o seu milagre”, mesmo diante da realidade acerba. Aliás, sobretudo diante da rudeza ou acrimónia da realidade.

 

Diria, como súmula, que o poeta Eduardo White contraditou, obstinadamente, essa realidade brutalmente áspera, agreste, rude, dura, insensível, severa, insensível. Aliás, se quisermos intuir o sentido da sua poesia, do seu alto canto e do seu destino foi uma implacável contestação dessa realidade, foi uma objecção permanente, um questionamento, uma indagação e uma demanda constante. Um poeta amante da vida e do amor. Amante da sua loucura de ser poeta.

 

Poeta apaixonado, arrebatado e arrebatador, efusivo e fervoroso, amante feroz da mulher e do seu corpo, da língua e do seu destino, navegante do Índico e do Oriente, implacável contra a morte e esse “pássaro do esquecimento”, oficiante da língua e esconjuro da morte, ele divisou a vida e a fortuna da poesia como a “vontade do inexplicável” e “a forma dúbia dos oceanos”.

 

Amou a língua e os poetas. Amou Rui de Noronha ou Jorge Viegas, José Craveirinha ou Glória de Sant’Anna, leu Rui Knopfli ou Luís Carlos Patraquim, leio-os com método, foi indefectível de Sophia de Mello Breyner Andresen, Herberto Helder, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Vinícius  de Moraes ou Fernando Pessoa, viveu a loucura de ser poeta. Aliás, Jorge Viegas, seu conterrâneo, escrevera: “No meu país / a única forma de liberdade permitida / é a loucura”. Eduardo White buscou incessantemente essa liberdade e essa loucura. Viveu como poeta, amou como poeta, morreu como poeta. Teve essa coragem e essa afoiteza. Foi capaz da contradita, da sedição. A poesia foi nele um gesto de audácia. Os versos do poema 60 de O País de Mim parecem inscrever, na pedra angular do tempo, esse destino indesmentível de poeta e esse tom irrevogavelmente elegíaco: “Estamos na morte com o mesmo encanto e com a mesma mestria com que estivemos na vida.” São premonitórios. O poeta declinaria a 24 de Agosto de 2014, aos 50 anos. Viveu até ao fim com estrépito. Celebrou sempre o milagre da vida. Com ímpeto, com arroubo, com veemência. Recordo-o assim: a sua coragem e a sua euforia de ser poeta. A sua alegria, também. A sua fúria. A sua bebedeira até ao fim, embriagado pela vida e pelo amor. Tinha nascido, em Quelimane, a 21 de Novembro de 1963, passam hoje, precisamente, 60 anos.

 

Cidade do Cabo, 21 de Novembro de 2023

Na semana passada, o Governo autorizou o Ministro da Saúde, Armindo Tiago, “a celebrar e assinar contratos para a instalação de Unidades de Hemodiálise em modelo de Parceria Público-Privada”. Não consta que tenha havido qualquer concurso público para o efeito.

 

O Governo autorizou também um “ajuste directo à Renal Care SA, para, em regime de concessão, executar os trabalhos de construção, gestão, operação, manutenção e devolução de instalação dos Serviços de Hemodiálise no Hospital Central de Quelimane, a ser efectuado pelo Governo da República de Moçambique”. 

 

O Governo não forneceu qualquer dado adicional sobre estas Parcerias Público-Privadas. No primeiro caso, não se conhece o grau de propriedade dos activos e das despesas de capital que serão investidos pelos parceiros privados. Nem a dimensão da partilha de riscos. 

 

No segundo caso, depreende-se que seja uma BOOT (Build, Own, Operate and Transfer). Ou seja, a Renal Care vai construir, possuir e operar os Serviços de Hemodiálise do Hospital Central de Quelimane, por um período não especificado, no fim do qual os serviços serão devolvidos ao Estado. (O modelo BOOT é geralmente usado em grandes projectos de infra-estruturas públicas e tecnológicas, muitas das vezes, porque o Estado não dispõe de recursos para implementá-los). 

 

Esta nova abordagem entra, no entanto, em contramão com a mais recente perspectiva governamental na provisão e expansão do serviço no país. (NE: A hemodiálise é o procedimento através do qual uma máquina filtra e limpa o sangue, fazendo parte do trabalho que o rim doente não pode fazer. O procedimento retira do corpo os resíduos prejudiciais à saúde, como o excesso de sal e de líquidos. Sua demanda quer no sector público como no privado moçambicano tem vindo a aumentar).

 

Dados de 2019 mostram que a unidade de hemodiálise do Hospital Central de Maputo assistia, em média, 70 pessoas e outras 35 encontravam-se numa lista de espera (ver estudo de Márcia Manhique e Carla Braga: “Este é o corpo que as máquinas me dão: hemodiálise e (re) conceptualização do corpo”, UEM, 2018).

 

A capacidade desta unidade era na altura insuficiente para a demanda. Ainda é. O serviço foi inaugurado e entrou em funcionamento em Dezembro de 2008. Na altura da sua inauguração, de acordo com o estudo de Manhique e Braga, a unidade tinha como capacidade instalada 12 máquinas e assistia em média 54 a 60 pacientes distribuídos em dois turnos diários, o da manhã e o da tarde.

 

“Entretanto, devido ao tempo de uso, dez anos depois, isto em 2018, algumas máquinas já começavam a apresentar problemas técnicos que, de acordo com um funcionário da Unidade de Hemodiálise, em entrevista: “(..) implicaram na redução de doze para oito e, às vezes, com alguma sorte, ou nove máquinas funcionais e, por consequência, implicava na necessidade de redefinir os dias de tratamento e alocação de alguns pacientes para outros dias”.

 

Para além desta unidade pública, Maputo e Matola têm também uns tantos (poucos) centros de hemodiálise no sector privado. Com a demanda crescente por estes serviços (centrada sobre a unidade do Hospital Central de Maputo), o Governo vinha respondendo à medida das suas capacidades, numa perspectiva de desanuviar a pressão sobre Maputo, mas também “descentralizar” a oferta pública.

 

Com efeito, no primeiro semestre de 2018, o MISAU abriu duas unidades de hemodiálise, uma na cidade da Beira e outra em Nampula. Na altura, o Ministério da Saúde anunciou que o custo do equipamento foi de 40 milhões de meticais (550 mil USD), cada. E, em finais de 2017, foram formados 28 profissionais, entre técnicos e pessoal administrativo.

 

A perspectiva deixada na altura, e publicamente, pelo MISAU foi a de que, depois de Nampula e Beira, o próximo investimento em serviços de hemodiálise numa capital provincial seria na cidade de Quelimane. Em Janeiro de 2018, a imprensa citava vastamente o antigo Director Nacional de Assistência Médica, Ussene Isse, garantindo que Quelimane era o alvo seguinte. Passados quatro anos, a promessa dessa infra-estrutura não foi concretizada.

 

Mas…em 2019, poucos meses depois das unidades de Nampula e Beira começarem a operar, um novo actor entrou em cena. Trata-se da Renal Care, S.A. com um capital social, integralmente subscrito e realizado em dinheiro, de 1.000.000,00 Mts. Seu contrato de sociedade é datado de 23 de Maio de 2019.

 

No seu objecto social, a Rena Care propõe-se realizar as seguintes actividades: prestação de serviços de consultoria; prestação de serviços médicos e de análises clínicas; formação profissional; gestão de participações sociais; produção de reagentes químicos usados em tratamentos médicos e/ou análises clínicas; comercialização de equipamentos e consumíveis médicos e manutenção de equipamentos médicos, entre outros.

 

É a esta firma, completamente nova no mercado, a que o Governo adjudicou, em ajuste directo, a montagem de serviços de hemodiálise em Quelimane. Quem são os seus donos? Ninguém sabe. E como a informação fornecida pelo Governo é escassa, é fácil inferir que a instalação de unidades de hemodiálise em regime de PPP vai para além de Quelimane.

 

Só pode. Em Maputo, a situação é caótica. A demanda é tão grande que a unidade do HCM não está a admitir novos pacientes para beneficiarem de hemodiálise. Duas razões são apontadas. 1) lotação esgotada; 2) falta de consumíveis. Em termos gerais, actualmente, a unidade do HCM funciona assim: um paciente internado tem direito de fazer 21 sessões gratuitas de hemodiálise e só no final delas é que, se o paciente não melhora, ele passa a pagar 6 mil Mts por sessão (12 mil Mts em duas sessões semanais).

 

“Carta” apurou que, presentemente, a lista de pacientes na fila de espera da Unidade do HCM é grande e, para que seja admitido um novo paciente, outro tem que morrer. Ou seja, muitos utentes não têm acesso ao serviço público, devendo recorrer ao sector privado. Mas se uma sessão custa 6 mil Mts no sector público, quanto custa no privado? Numa ronda, feita ontem, por alguns hospitais privados de Maputo, constatamos que a oferta do sector privado custa por sessão não menos que 9 mil Meticais. E na unidade do HCM, das 12 máquinas inauguradas em 2008, apenas duas estão a funcionar, disse uma fonte interna sob anonimato.

 

O cenário é propício para a entrada em cena de uma PPP visando apenas o lucro. É o que está acontecendo em Moçambique. (Marcelo Mosse)

segunda-feira, 30 outubro 2023 13:38

Cadê o busto e/ou a estátua?

Hoje, a nossa campeoníssima faz anos. A Lurdes Mutola é uma das grandes personalidades ímpares da Pérola do Indico. O seu trabalho fê-la conquistar um lugar na história do desporto do planeta terra. Ela tem um lugar na glória. Em condições normais, numa sociedade sedenta de referências e verdadeiros símbolos, ela merece uma estátua similar a de Eusébio da Silva Ferreira. Já é tempo de se colocar, pelo menos, um busto dela (pode ser de gesso, o mais barato) no Parque dos Continuadores na Cidade de Maputo. Com esse mínimo gesto de reconhecimento público ganharia a capital, o País e o mundo.

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