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É recorrente e, desta vez, não muda: quando se chega ao fim de um consulado, a palavra de ordem ser “O Candidato”. Aqui, o Candidato na verdade ainda nem sequer é candidato; está-se a falar do Candidato a Candidato do Partido Frelimo. As outras formações políticas têm a sua maneira de chegar ao Candidato, mas nesta nesta missiva o sujeito é o Candidato do Partido Frelimo.

 

Se o Dia da Vitória é 7 de Setembro de 1974, então para mim somos independentes desde 1974. O Dia 25 de Junho de 1975 é apenas a data da proclamação da Independência Nacional, então o Partido Frelimo governa Moçambique há 50 anos!

 

Pela característica específica da nossa jovem Nação, o Partido Frelimo instrui o governo como deve governar, passe o pleonasmo, e isso sempre foi assim. É sabido que um Primeiro Secretário do Partido tem mais poder do que um Governador da Província e, claramente, sempre será impossível ter-se um Presidente do Partido que não seja Presidente da República, pelo menos em governos do Partido Frelimo.

 

Isto às vezes me faz confusão, de um lado por eu ser apenas um membro júnior do Partido Frelimo, mas de outro lado, talvez porque eu não tenha tido uma educação política, per si. É que, numa democracia, quando vamos às eleições, embora os empates sejam coisas que acontecem, normalmente há uma vitória e uma derrota. Simples como isso.

 

A minha confusão costuma surgir quando, neste debate da sucessão, mais do que se olhar para o perfil do futuro candidato à Presidência da República, as pessoas estão preocupadas com o candidato a candidato. Eu não concordo. Eu penso que o que estamos à procura é de uma pessoa que não só nos garanta uma vitória no pleito que se avizinha, mas também garanta a sua reeleição, e isso ultrapassa a vontade de menos de 20 pessoas e em menos de três meses.

 

O racional acima é a antítese de todo este processo. Parece haver garantias que para ser Presidente deste Moçambique é só garantir que dos outros candidatos você seja “O Candidato”.

 

Estas assunpções é que nos fazem ter Beira e Quelimane nas mãos da oposição, o que para mim não é necessariamente um problema, afinal, a finalidade da democracia é exactamente garantir a alternância, havendo. Estas cidades deveriam ser estudadas para se perceber primeiro porque passaram para lá e, segundo, porque já não estão a passar para cá?

 

Pode parecer um clichê, mas é nas derrotas que devemos fazer uma introspecção sob pena de termos surpresas que, até o mais intelectual dos intelectuais não disponha de uma explicação racional. O certo é que não há vitórias garantidas antes do embate, se a história recente valer de alguma coisa; pelo menos vejamos a questão da Rússia e Ucrânia.

 

É preciso pensar que a Frelimo não governará eternamente Moçambique e não interessa o quão membros ardentes sejamos, o trinômio Partido-Governo-Estado um dia pode ser dissolvido. E o que vai acontecer?!

 

A minha pergunta acima é retórica e não precisa ser liminarmente respondida, mas podemos divagar em torno disso.

 

Estamos a pouco menos de oito meses das eleições e tudo o que foi veiculado até agora é boato. O Partido Frelimo não tem candidatos nem candidatos a candidatos.

 

Já foi instruído que “…Não é você querer, é preciso que nós queiramos, para você se querer”; portanto, se seguirmos à risca, mesmo os candidatos a candidatos devem ser queridos por um círculo pequeno de pessoas, para que um outro número de pessoas, um pouco maior que o primeiro, chancele o candidato.

 

A pergunta que não se quer calar: “Se este grupo errar na escolha?”.

 

Eu até acredito que os meus chefes na Comissão Política têm olho de lince quando se trata destas coisas de ver aquela pessoa que nos vai guiar para as eleições, mas e o Comité Central?

 

O segundo órgão é extremamente importante e extenso, e cada pessoa com suas aspirações! Infelizmente, às vezes, estas aspirações são pessoais e não necessariamente voltadas para o povo. O que acontecerá no dia em que o Comité Central escolher um candidato que não consiga renovar o mandato ou, na pior das hipóteses, nem consiga um mandato?!

 

É aqui onde trago a parábola das três refeições: “Até muitos as têm, mas apenas um pequeno grupo de pessoas neste Moçambique é que tem carboidratos, vitaminas, lípidos, água, proteínas e minerais na mesa, portanto uma refeição balanceada.”

 

Tem-se visto no Parlamento a votação efusiva por uma peça de legislação para depois descobrirmos que afinal não devia ter sido aquilo e Ematum é um exemplo concreto: temos pessoas no Língamo, mas o voto dos deputados do nosso partido foi para a prossecução daquela empreitada. Então ficamos como?

 

O que acontece é que os melhores filhos do Partido Frelimo definitivamente não estão naquele parlamento, salvo poucas excepções. O grosso que está ali são camaradas que não têm ocupação e a única coisa que se encontrou foi um assento no parlamento para, pelo menos, garantir uma refeição condigna no fim do dia, mas que de legislação pouco ou nada entendem, de economia nem se fala, e a lista é extensa. Mas, estão ali no Parlamento e, aparentemente, me representam enquanto membro e cidadão! É que foram nomeados e depois eleitos pelos pares na base e chancelados no topo e, até renovam, então o processo foi democrático!

 

Alguém já pensou num modelo em que os parlamentares são distribuídos pelos distritos deste país e serem eleitos lá mesmo no distrito?! É que em vez da manta do Partido estes deputados só chegariam ao Parlamento se convencessem os seus constituintes que na verdade podem ali estar, pois defendem os seus interesses. Com a manta do Partido, as pessoas simplesmente corrompem o sistema para estarem numa boa posição na lista do Partido e depois é aquilo que temos visto.

 

O próximo Candidato do Partido Frelimo e futuro Presidente da República precisa, para além de muitas outras coisas, olhar para:

 

1 - Raptos

 

Este fenómeno já dilacerou a sociedade e, quando começou, foram exactamente membros seniores do Partido Frelimo que, em canal aberto, disseram que era um processo normal numa economia em franco desenvolvimento. Disseram que era um acerto de contas entre monhês, um termo não corrente e até certo ponto pejorativo para com os nossos irmãos de origem asiática, especificamente no subcontinente. O certo é que estamos há mais de 10 anos nesta ladainha, muitas movimentações na polícia a nível de topo e até na máquina securitária, mas os raptos não têm rosto, acontecem quase que semanalmente, milhões de dólares estão a ser pagos e famílias destruídas. Moçambicanos e estrangeiros abandonaram o país, o investimento estrangeiro retraiu e não há negócios.

 

2 - Cabo Delgado

 

Enquanto os especialistas se digladiam na imprensa sobre a definição do fenómeno que está a acontecer em Cabo Delgado, no terreno, população civil e Forças de Defesa e Segurança estão a perder a vida diariamente por causa de algo que primeiro se chamou de garimpeiros ilegais, depois bandidos, mais tarde insurgentes e, finalmente, terroristas. Nos escritórios, estamos à procura de definição. O certo é que enquanto estas definições não se traduzirem em acções concretas no terreno, aqueles 60 biliões que sempre se falaram em investimento na área de hidrocarbonetos vão-se esfumar, para não falar em ouro, grafite e rubis! O certo é que, desde Outubro de 2017 para cá, mais de 100 pessoas perderam a vida, milhares de irmãos deslocados e muitos investimentos paralisados.

 

3 - Economia

 

É muito comum falar-se do potencial de Moçambique. Myanmar também tem potencial, só que eles investem na produção de heroína. Moçambique tem uma costa de 2,800 quilómetros; a Somália também tem costa. Para que serve essa tal costa se o turista é extorquido quando chega (migração e polícia), quando está na estrada (migração, polícia, polícia de trânsito), quando sai (polícia e alfândegas)? Moçambique “já não é bom terra”, diz qualquer turista que por aqui tenha passado nos últimos anos. Por que vou comprar castanhas ali no Feima para depois ser stressado nos aeroportos porque “deveria trazer um documento do ministério do Turismo”? São coisas simples que matam uma economia e chutam à irrelevância o Ministério de Turismo e Cultura, instituição que já deveria ter sido extinta há muito tempo.

 

4- Agricultura

 

A nossa constituição diz claramente que a agricultura é a base do desenvolvimento. Era, possivelmente nos tempos dos libertadores; esse dogma não serve e não precisa de um doutoramento em economia, simplesmente olha-se para a estrutura do nosso PIB e fica claro como água da Praia do WIMBI. Sim, não se come carvão e nem se bebe gás liquefeito, mas talvez seja altura de se retirar esse slogan, agricultura é incipiente. A comercial não avança e a de subsistência, como o nome diz, é mesmo de subsistência.

 

Nada contra a agricultura, mas talvez o próximo que reveja não só o slogan, mas também que entenda que, como base de desenvolvimento, a agricultura já foi ultrapassada. Ensinemos as melhores práticas aos nossos camponeses, tiremo-los de camponeses e os façamos de pequenos e médios agricultores, mas agricultura ser a base de desenvolvimento neste Moçambique do século XXI é heresia, é falácia; na verdade, é conversa para boi dormir. Enquanto o mundo está a avançar para a Quarta Revolução Industrial, mais do que agricultura já é altura de começarmos a implementar e não falar, da industrialização!

 

5 - Educação

 

Não há investimento que não tenha retorno na educação. O líder que não quer ver isso definitivamente quer um povo analfabeto. Temos um déficit de mais de 30,000 salas de aula neste país, o que quer dizer que crianças estão a estudar em condições precárias e, na pior das hipóteses, até debaixo das árvores.

 

Pode parecer um insólito, mas a província de Maputo é que lidera esta posição de maior número de crianças sem salas de aulas. Cada governo que entra não só troca o Ministro, mas também o nome do ministério, e isto não é sintomático apenas naquele ministério, penso que os ministérios da Defesa Nacional e do Interior devem ser os únicos que ainda mantêm os seus nomes.

 

A educação é a base de desenvolvimento, mas ao fim de 50 anos temos um pouco menos de 1000 doutores e as universidades vão nascendo tipo cogumelos. No fim, temos gente que faz Direito ou Economia para ir trabalhar para o Estado e garantir a reforma. Escolas técnicas não temos e, como consequência, ninguém sabe sujar as mãos desde o primeiro dia que entra no mercado de trabalho.

 

Eu estudei com “A Lila pula, o Tito ata o pato” e se há alguma coisa que deveria ser adicionada naqueles livros é mesmo adição. O que temos visto é matar uma literatura inteira a ser aplicada na primária ou secundária, colocar o Estado do Zimbabwe a se delimitar a norte com o Mar Vermelho e o Golfo de Aden é o ponto mais alto da heresia.

 

6 - Forças de Defesa e Segurança

 

Há uma necessidade premente de uma reorientação geral nas nossas FDS, principalmente a polícia. Pode parecer uma anedota, mas há vezes em que não se sabe se a única coisa que separa agente do malfeitor não é apenas a farda, pois armas os bandidos também têm, e até mais sofisticadas.

 

Quando o ponto 1 acima acontece, primeiro o “modus operandi” é que se trata de  gente que “trata de arma por tu”, como se diz em linguagem popular, logo depois aparece a polícia para pedir gravações de CCTV privadas!

 

Afinal, os 148 milhões de dólares que o Estado investiu na Rede Nacional de Segurança foram para onde? Quando o meu melhor amigo foi raptado há quatro anos, sou chamado ao SERNIC para prestar declarações e estão a perguntar-me pela estrutura accionista da empresa em que eu era o Director Geral. Mesmo?!! O fim foi aquele que se viu e o meu amigo teve de abandonar o país. É que por ele ser de origem asiática, os donos deste país, sim, esses mesmos que já sequestraram o Estado, acharam que ele era rico, não sendo, mesmo assim foi extorquido.

 

O Ministério do Interior não precisa de um ministro polícia e isto não é falácia. O que o ministério do Interior precisa é de um gestor, coadjuvado por um Comandante-Geral implacável. É que os generais já descobriram que qualquer um deles pode ser ministro naquela casa e daí, mais do que estancar o crime, se estão a apunhalar para um dia chegar ao posto cimeiro!

 

7 - SISE

 

Herdou-se uma máquina operacional extraordinária do SNASP, formada pela STASI, e, ao longo do tempo, aquilo que se queria como Serviços de Informação e Segurança de Estado parece mais uma extensão do departamento de segurança do meu Partido Frelimo.

 

É mais fácil ter gente destacada para controlar movimentos de elementos da oposição ou do Partido Frelimo que tenham alguma relação de amizade ou familiaridade com elementos da oposição, do que na verdade se fazer o serviço que se quer. Estes não são inimigos do Estado, são adversários políticos do Partido Frelimo!

 

O comum é estares num bar e alguém gritar que é do SISE. Ser do SISE, e às vezes nem são, pode-te conseguir uma boa donzela neste Moçambique!

 

Sendo um órgão central, o SISE tem delegações provinciais e quem tem delegação provincial definitivamente tem um delegado distrital! Onde estava o SISE em Palma, Mocímboa da Praia, Muidumbe, Quissanga e outros distritos onde estes terroristas foram fazendo e desfazendo como se não tivéssemos inteligência?!

 

Não é para uma resposta, mas se SISE também está infiltrado, então estamos entregues, pois para mim este é o último flanco de defesa da nossa soberania.

 

Parem de ir aos comícios políticos, um dos pontos onde está o nosso inimigo chama-se Cabo Delgado.

 

8 - Corrupção

 

É muito comum falarmos da corrupção e o seu combate, mas é mesmo discurso. É que enquanto a corrupção existe, o seu combate é inexistente. O Juiz é corrupto, o Procurador é corrupto, o Advogado é corrupto, o Polícia é corrupto, o Político é corrupto, até o empregado de mesa de um restaurante é corrupto.

 

A inoperância é visível a olho nu. Diz-se que justiça tardia é justiça não servida e aqui em Moçambique qualquer bandido apanhado em flagrante quer ser levado à esquadra. Uma semana depois está a passear nas mesmas ruas.

 

Um bandido ludibriou a minha empresa em Caia em 2015. O caso ainda não foi a julgamento e ele é uma espécie de estrela nas redes sociais! Não era melhor ir ter com aquele rapaz do Estrela Vermelha que, por 35,000 meticais, pode partir-te as duas pernas?!

 

A justiça pelas próprias mãos não é porque o povo ficou selvagem, é que quem de direito não faz o seu trabalho.

 

9 - Vice-Ministros

 

Figuras de que definitivamente não precisamos. Autênticos fardos para o nosso minguado Orçamento Geral do Estado e não têm função. Fica-se com um ministro que sabe porque se está ali e um Secretário Permanente para as questões administrativas. Ponto final.

 

10 - Governo

 

Tem de se trazer um governo funcional. Que pague bem aos ministros para poderem comprar os seus carros e arrendar as suas casas e que tenham dinheiro para a sua vida social. Chega de engordar um sistema já falido com benesses infinitas para os nossos dirigentes. Para começar, até a aprovação do orçamento de funcionamento, cada ministro deveria ir do seu próprio carro e estar a viver na própria casa.

 

É que mais do que querer ser querido, é preciso saber como será, quando for querido, pois este país está cheio de gente de boa vontade, mas o que está a precisar é de gente que, para além de carregar o estandarte, possa sentir-se comprometida com a Nação Moçambicana e as suas nuances, antes de qualquer outra coisa. Ponto Final.

 

“Mais cedo ou mais tarde, no caso, mais tarde, a Sessão do comité Central da Frelimo irá acontecer e os pré-candidatos conhecidos. A questão que se coloca, aos membros da Comissão Política e do comité Central é: estão satisfeitos com a forma como as coisas estão, o tempo de realização das eleições internas é razoável? Se não, então, que agendem o debate desse assunto e encontrem formas de intervenção, independentes da liderança máxima, que possam corrigir o que não está certo. Isso passa, naturalmente, por rever os poderes dos vários órgãos e dos próprios membros. A Frelimo não deve estar na boca do povo por piores razões”.

 

AB

 

“Os sucessivos adiamentos da derradeira reunião da Comissão Política da Frelimo (o órgão mais importante no intervalo entre as Sessões do Comité Central), para a indicação dos três a quatro nomes que irão constituir a lista dos pré-candidatos a candidatos da Frelimo para as eleições gerais, estão a criar um grande nervosismo. Estão também a alimentar várias teorias de conspiração na corte partidária, cada uma mais extravagante que a outra”.

 

In Canal de Moçambique, edição nº 869 de 21 de Fevereiro de 2024

 

Nos derradeiros momentos, rumo às eleições Gerais para a Presidência da República, Assembleia da República e Assembleias Provinciais, 11 de Outubro de 2024, a Frelimo ainda não apresentou candidato para qualquer das eleições, sendo o mais importante, no interesse público, o candidato da Frelimo à Presidência da República. A importância do candidato da Frelimo, na minha opinião, deriva do facto de ser quase certo que será o próximo Presidente da Frelimo.

 

Pela narrativa de alguns membros seniores da Frelimo, que se têm prestado a dar a cara, quer me parecer que um dos grandes obstáculos é o facto de ser a “vez” do centro do País oferecer candidato a candidato para a Presidência da República, segundo um acordo de “cavalheiros” que, por ser de “cavalheiros” não foi reduzido à escrita, mas, socorrendo-me do texto publicado na edição acima, a minha reflexão é no sentido de a Frelimo manter-se coerente com os seus princípios! Passo a citar o jornal “Canal de Moçambique”.

 

“O Canal de Moçambique apurou que, em 2013, supunha-se que José Pacheco fizesse a vez de Filipe Nyusi, e Armando Guebuza até estava para lá inclinado, mas, para sossegar Alberto Chipande, que, entre todos, era o mais barulhento, chegou-se a um acordo sobre “a vez do norte”, e Alberto Chipande, que estava com problemas de saúde, indicou Filipe Nyusi.

 

José Pacheco retirou a sua candidatura e apoiou Filipe Nyusi. José Pacheco está agora em campanha como candidato natural, fruto desses arranjos” no mesmo pacote (da vez do centro), acabou por surgir um candidato que, de todos, é o que mais deixa clara a sua intenção de ser candidato. É o Jaime Basílio Monteiro”, fim da citação.

 

Posto isto, e porque não existe nenhum desmentido claro, através das personalidades que, supostamente, entraram para o tal acordo de “cavalheiros”, como pacato cidadão, só de opinião que a Frelimo deve manter essa coerência, pelo menos, até completar o ciclo, que será o “SUL, NORTE E CENTRO”, julgo que não é pedir muito à Frelimo, representado pelo seu Comité Central. Sejais coerentes!

 

É verdade que a Frelimo de ontem, a que estabeleceu o acordo de Governação de Moçambique, não é a mesma de hoje. Quando se estabeleceu esse acordo de Governação, estava-se no regime de partido único, partido “que dirige o povo”, e hoje estamos num sistema multipartidário, um sistema em que, independentemente da sua região, qualquer um pode concorrer às eleições. Este regime de livre concurso, por consciência, não devia ou não deve contar para a Frelimo, por ter assumido esse compromisso. Sabe-se também que as personalidades que fizeram esse acordo, hoje, na Frelimo, podem não ser relevantes, mas não serem relevantes é o mesmo que não respeitarem a sua própria história, entretanto, isso já não surpreende a sociedade!

 

Por outro lado, a Frelimo deveria rever os seus instrumentos de Governação interna, incluindo os poderes do seu Presidente. Com este andar, podemos vir a ter um Presidente que nem a Comissão Política do seu partido irá ouvir. Nessa perspectiva, julgo que a própria Comissão Política não devia ser refém da boa disposição do seu Presidente para agendar e debater matérias importantes do País. Dever-se-ia prever outra forma de convocação e de agendamento das matérias. O actual Presidente está de saída, o próximo permanece uma incógnita.

 

Para concluir esta reflexão, a ideia é que a Comissão Política da Frelimo apresente quatro nomes a pré-candidatos da Frelimo, todos do centro de Moçambique, sendo que, havendo um membro da Frelimo com vontade e direito de concorrer, fora deste acordo de “cavalheiros” existente, este possa concorrer. Assim, na minha opinião, a Frelimo manter-se-ia coerente com os seus princípios e respeitaria a sua própria história. Agora, vir a público dizer que “nunca houve acordo nesse sentido” e o que é ainda pior, exigir a cópia desse tal acordo, é uma atitude de má-fé!

 

Devo deixar claro que esta minha reflexão, por enquanto, não defende nenhum pré-candidato especial. Mais ainda, eu sou do Sul, da Província de Inhambane, por isso não faço parte dos cidadãos do centro de Moçambique. Por outras palavras, não tenho qualquer interesse no processo!

 

Adelino Buque

“A acção dos terroristas em Cabo-Delgado dói a qualquer moçambicano consciente das responsabilidades sociais e humanas. Os cidadãos que sofrem são nossos irmãos, os cidadãos que sofrem ataques são moçambicanos como nós e, convenhamos, a solução do problema de Cabo-Delgado, que remonta a 2017, é do Estado moçambicano. Não vejo razões para ficarmos indignados com a posição da Embaixada de França.  E Mais, a Total é uma empresa privada, logo, quem irá decidir sobre a permanência, retoma ou desistência são os seus dirigentes e não o Governo e tão-pouco a Embaixada Francesa.

Nós, moçambicanos, devemos assumir as nossas responsabilidades. O assunto de Cabo-Delgado é de soberania de Moçambique e o país deve resolver o problema recorrendo a todos os meios possíveis e imaginários, sem endossarmos responsabilidades a terceiros. Hoje, 21 de Fevereiro de 2024, a Embaixada de Inglaterra alinhou pelo mesmo diapasão e, acredito, muitas outras chancelarias o farrão. Assumamos as nossas responsabilidades, o povo que está a ser chacinado, junto com as residências queimadas e outros bens públicos, são pertença de moçambicanos. Isso não nos indigna? Indigna-nos a posição da Embaixada Francesa, quando defende seus concidadãos? Sejamos sérios!”

 
AB

“A França estabelece com Moçambique uma antiga relação de vizinhança pelo Oceano Índico. A pertença da Ilha Reunião à França e que muito cedo desenvolveu relações económicas com Moçambique (desde 1642). A presença francesa na Ilha Mayotte tornada departamento francês através do referêndum em 2009 data de 1841. Estes dois departamentos franceses agrupam aproximadamente um milhão de habitantes, a maior população francesa do ultramar e são vectores importantes da cooperação (militar, económica e cultural) entre a França, Moçambique e com outros países do Oceano Índico”

In Site da Embaixada Francesa em Moçambique

“Moçambique acolhe investimentos de Empresas francesas de grande dimensão, a exemplo da Total e Technip que, em conjunto, investem no nosso país mais de 20 mil milhões de dólares americanos. Este volume de investimentos mostra claramente que Moçambique é um parceiro vital e estratégico para a França, razão mais do que suficiente para que nos fosse endereçado o convite”.

“Ficou claro que Moçambique e França partilham interesses económicos vitais, cujo sucesso passa por um ambiente de Paz, segurança e estabilidade de Moçambique”, assegurou o Chefe do Estado, em conferência de Imprensa de balanço da visita à França.

In Presidência da República, 19 de Maio de 2021 

A Embaixada Francesa em Moçambique aconselhou os seus concidadãos a não viajarem para as terras de Cabo-Delgado, porque não é seguro, devido à violência que se reporta naquela parcela de Moçambique. As reacções internas sobre esta notícia são variadas. Alguns consideram que a França ainda age como um país colonizador, usando métodos do Seculo XIX, outros, ainda, falam de desinvestimento da França em Moçambique, alegadamente, porque a declaração da Embaixada Francesa é ofensiva!

Leio e oiço tudo isso, estupefato. Não consigo compreender as razões de reacções tão virulentas, quando uma embaixada, em representação do seu país, não aconselha os seus concidadãos a irem para uma zona de guerra, onde os terroristas, quer queiramos, quer não, é que determinam a música para se dançar. Não percebo muito bem por que razão a França teria de aconselhar seus cidadãos a irem para Cabo-Delgado, sabido que a estabilidade e segurança são precárias. Mesmo os nativos estão a transferir-se para lugares seguros fora de Cabo-Delgado, a questão é: porque os franceses teriam de recomendar a ida para esse lugar!

Há muita coisa que se possa dizer sobre a guerra terrorista de Cabo-Delgado, mesmo recuando aos tempos em que a segurança dos investidores era feita por estrangeiros e falava-se de mais de 300 mil dólares americanos dia, o que levou as autoridades moçambicanas a pensarem em uma solução interna, o que culminou com as dívidas ocultas. Até isso podemos chamar à colação da instabilidade em Cabo-Delgado, mas dizer que a Embaixada de França está equivocada, por aconselhar seus cidadãos a não viajarem para Cabo-Delgado, definitivamente, NÃO!

Veja, no texto acima, a intervenção do Presidente da República, depois da visita à França, reconhecendo a necessidade de Moçambique assegurar um ambiente de paz, segurança e estabilidade para que haja sucesso. Ora, pelos relatos vindos da província de Cabo-Delgado, as condições de segurança e estabilidade tendem a deteriorar e dizer que é da responsabilidade dos franceses julgo ser exagerado. Assumamos as nossas responsabilidades internas e deixemos de atirar culpas a terceiros, sobre as nossas políticas erradas!

Eu, pessoalmente, sinto-me “Cabo-Delgado”. Carrego o sofrimento dos meus concidadãos de Cabo-Delgado. Agora, exigir que um cidadão francês sinta o mesmo que nós, julgo ser injusto. E mais, a Total é uma empresa privada e não pública, o Embaixador representa os interesses do Estado Francês e não propriamente as Empresas Francesas, por isso associar o pronunciamento do Embaixador e a Total é forçar coisas que não se são iguais, embora se possam complementar. Cabe ao Governo a reacção e não aos cidadãos nacionais e ou estrangeiros. Contudo, e acima de tudo, é responsabilidade do Estado Moçambicano garantir a Paz, segurança e estabilidade em Cabo-Delgado e não de outra entidade qualquer!

Adelino Buque

quarta-feira, 21 fevereiro 2024 10:42

Cabo-Delgado e a deficiência de comunicação!

“Os jornalistas também são alvos dos terroristas. A guerra terrorista, na província nortenha de Cabo-Delgado, tende a criar grandes divisões entre a sociedade, de um modo geral e entre a sociedade e a classe dirigente. Na minha opinião, isso se deve às deficiências na comunicação, na era da internet, em que as pessoas podem comunicar-se em privado e em público, estando em qualquer local. Difícil é omitir factos e, ainda que os órgãos competentes não divulguem determinada informação, esta será divulgada, de qualquer forma, com o potencial de ser divulgada com algum exagero, seguindo a velha máxima de que “quem conta uma história, aumenta um ponto”. Assim sendo, o importante, nestes casos, seria instituir-se alguém que sirva de ligação entre os factos no terreno e a sociedade, através dos órgãos de comunicação social. Acusar os jornalistas não é a melhor solução para o problema de Cabo-Delgado”.

AB

A guerra movida por terroristas, na província de Cabo-Delgado, está com tendências a criar múltiplas divisões internas, entre os moçambicanos e entre os moçambicanos e a classe dos governantes. Na minha opinião, razões não faltam para esse mal-estar entre nós e da sociedade contra os governantes. Aqui, devo referir que um dos grandes problemas, que suscita mal-estar entre a sociedade e os governantes é a comunicação.

São raras as comunicações sobre o estado de guerra em Cabo-Delgado. Das bocas dos governantes, ouve-se um exacerbado optimismo, que contrasta com os factos no terreno. Entre esse vazio, criado por quem deve comunicar, surgem os órgãos de comunicação externos, com maior domínio da situação no terreno, que propriamente os órgãos de comunicação nacionais e a questão que se coloca é: porque os nossos órgãos de comunicação não divulgam as notícias que são divulgadas por outros órgãos de comunicação para o mundo. Não havendo essa comunicação, as vítimas, muitas vezes, recorrem às redes sociais para lançarem o seu grito de pedido de socorro!

Há uma coisa inegável nos acontecimentos, quando existe um facto e os órgãos competentes divulgam esse facto, não há como especular sobre esse mesmo facto. O que pode acontecer, e acontece, é cada órgão de comunicação social produzir notícias de acordo com os seus interesses editoriais e, quando é assim, é fácil o cidadão atento tirar as suas próprias conclusões porque, certamente, terá visto nesta ou naquela televisão, nesta e outra estação de radiodifusão e lido nos jornais e por aí. Dificilmente se pode falar de estar a favor deste ou do outro, podemos falar de deturpação da notícia porque é pública.

Pessoalmente, compreendo o mal-estar do Governador de Cabo-Delgado, contudo, penso que ele próprio não é informado, tempestivamente, das ocorrências militares no território que governa. O domínio da situação está nos militares e todos sabemos que o governador não é militar. Enquanto os militares não receberem ordens claras sobre a divulgação das ocorrências no teatro operacional, continuaremos a nos acusar mutuamente. Imagino como terão ficado os jornalistas baseados em Pemba ou em Cabo-Delgado no geral com a “acusação” do Governador da Província.

Por estas e outras razões, é hora, na minha opinião, de todos os órgãos de comunicação social, baseados ou não em Cabo-Delgado, conhecerem o seu interlocutor válido, os relatos esporádicos dos Administradores, o aparecimento periódico do Governador e as raras aparições dos militares são a causa da especulação. Esse interlocutor deve servir, também, para os órgãos de comunicação estrangeiros, de modo a combater as assimetrias de informação.

Para terminar esta minha reflexão, peço a sociedade moçambicana, que nos unamos em torno de Cabo-Delgado. O terrorismo que a população vive naquela província atinge-nos de qualquer forma e todos temos um familiar a residir ou em missão de serviço naquela província, para além de que são cidadãos moçambicanos, nossos concidadãos, que sofrem com a guerra. Por isso, todos nós, devemos dizer basta a guerra naquela parcela de Moçambique!

Adelino Buque

quinta-feira, 15 fevereiro 2024 07:18

RICARDO RANGEL, 100 ANOS

Ricardo Rangel é, indubitavelmente, o mais sagaz, intrépido e profícuo fotógrafo moçambicano do “instante decisivo”. O grande fotojornalista moçambicano do século XX: arguto, vivo, veloz, ágil, astuto. É também um dos fundadores do fotojornalismo entre nós. Nasceu na então cidade Lourenço Marques (Maputo) a 15 de Fevereiro de 1924 – há 100 anos! –, e seria conhecido, celebrado e festejado em muitos lugares do Mundo, onde expôs a sua arte e o seu génio. Tinha nas veias sangue africano, grego e chinês. Andou a vida toda com uma máquina em riste e devemos-lhe um país em imagens ao longo de décadas. Um país que se demarcava do conformismo colonial e nos remetia para a dissensão, para a defesa dos proscritos, para a justiça e para a liberdade e dignidade da maioria excluída. Era, sobretudo, um fotojornalista. A sua lente tinha arte, mas dava-nos sempre notícias. Notícias do seu tempo, o nosso tempo. Era, no fundo, um jornalista arrojado e audaz, intrémulo e resoluto. Um dos nossos maiores intérpretes. Um dos maiores intérpretes da moçambicanidade.

 

O fotojornalismo, sabe-se, informa. O fotojornalismo é quando a fotografia tem o carácter e a urgência da notícia. O fotojornalista mostra, revela, expõe, denuncia, opina. Interpela, interpela-nos. Indaga, indaga-nos. Esta “disciplina”, por assim dizer, afirmou-se no período ulterior à Primeira Guerra Mundial, entre as décadas 20-30 do século passado. Isto no Ocidente. A Moçambique chegará atrasada, nos anos 30-40. Deve-se, sobretudo, ao “Lourenço Marques Guardian”, de Arthur William  Bayly, um famoso comerciante e publicista, oriundo de Durban, que se instalou na antiga Delagoa Bay e prosperou. Uma casa homónima haveria de marcar a cidade durante décadas. Mais tarde, seria o vetusto “Notícias” que haveria de desenvolver a fotografia como informação. Primeiro como pura ilustração do texto. Sempre como apanágio dos ideários da época: do Império, dos colonos e da metrópole e das suas glórias, amesquinhando um povo que Rangel haveria de ajudar a sublevar.

 

Ricardo Rangel e Sebastião Langa seriam os primeiros não-brancos a fazer fotografia no país. Iniciaram a aprendizagem em estúdios profissionais que existiam na época. Os estúdios fotográficos começaram a ser instalados nos finais do século XIX em Moçambique com a chegada do daguerreótipo. O retrato populariza-se então. Nos anos 30-40 surgem, no país, publicações ao estilo das que então proliferavam na Europa e nos Estados Unidos. O “Ilustrado” no “Notícias”, entre 1933-34, seguindo-se-lhe o “África Ilustrada”, no mesmo grupo editorial, nos anos 40. Mais tarde, em 1951, o “Império”. A cidade de Lourenço Marques e/ou a sua pujança, que lhe advinha sobretudo do seu porto, assume um ineludível protagonismo.

 

Nos anos 50, primeiro no “Notícias da Tarde” e, posteriormente, no “Notícias”, Ricardo Rangel, já conhecedor dos segredos técnicos da sua profissão – expendera anos na câmara escura –, desfaz o estereótipo: é o primeiro fotojornalista não-branco na imprensa em Moçambique. É também ele que irá romper com os arquétipos vigentes. Rangel empresta à época e ao fotojornalismo um olhar inédito, sempre inconformado e, sobretudo, insubmisso. Recusa os ditames e subverte a linguagem. Uma outra realidade, aquela que só aparecia para justificar o proselitismo do regime, ganha estatuto e dignidade na sua lente. Diverge dos interesses e da ordem estabelecida. Denega o exótico que era prática e traz para as páginas da imprensa uma outra realidade social.

 

O jornal  “A Tribuna”, quando surge nos 60, vai para além da “fronteira do asfalto” (Luandino dixit) e Ricardo Rangel é um dos responsáveis por cartografar, ali, a chamada “cidade de caniço”. Vale, a propósito, ler o que Luís Bernardo Honwana ou Calane da Silva testemunharam sobre o tema. Aliás, muitos anos depois, o próprio fotógrafo haveria de exultar, ao lembrar-se daquelas páginas que se rasgavam diante de outros olhares e através das quais ele moçambicaniza a fotografia. Estamos num tempo – ulterior à Segunda Guerra Mundial – em que uma geração de jovens intelectuais se afirma e há uma importante agitação cultural nos jornais e nas agremiações culturais e cívicas: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Nogar, Luís Bernardo Honwana, Rui Knopfli, Ruy Guerra, entre outros. Há, no entanto, os ecos de “O Brado Africano” e a acção da Associação Africana ou das figuras de Rui de Noronha ou José Albasini.

 

Rangel calcorreava a cidade com a máquina em riste e há no seu vasto repositório a memória dolorosa do tempo colonial que o mito intenta obnubilar. A periferia e as suas contradições estão também, por assim dizer, inscritas no seu mítico “Pão Nosso de Cada Noite”. Rangel conheceu e amou a noite de Lourenço Marques. Para trás ficaria a memória da Delagoa Bay ancorada ali no tempo, entre os arrabaldes da antiga Baixa, do antigo presídio e toda aquela zona onde se situava a Praça 7 de Março (hoje 25 de Junho).

 

O porto e a navegação internacional fizeram de Delagoa Bay, primeiro, Lourenço Marques, depois, um lugar de referência para os marítimos de passagem. Fizeram, no fundo, a própria Lourenço Marques. Na baixa, que era o centro da cidade, as ruas tinham um bulício que impregna alguma da nossa boa literatura. Lourenço Marques fora a cidade dos trens, dos “rickshaws” e das galeras puxadas a parelhas. Fora a cidade dos quiosques da praça, dos “bars” e das cervejarias.

 

Foi naqueles anos fervilhantes e excitantes para os que viviam ou passavam temporadas em Lourenço Marques – anos 50 e 60, sobretudo – que Ricardo Rangel fotografou a vida nocturna de uma das mais emblemáticas ruas da baixa – a Rua Araújo. Desde meados do século XIX que a Rua Araújo se revestira de um carácter dúbio: durante o dia mantinha todo o aspecto normal duma rua comercial e de escritórios, ao fim do dia ganhava os contornos de clandestinidade que a tornariam mais tarde célebre.

 

Foi com a descoberta das minas do ouro do Rand e a construção da linha férrea para o Transvaal que Lourenço Marques deixar-se-á invadir por gente exótica e estranha. Será esta gente que transformará depressa a Rua Araújo, à noite, numa pequena rua do “Far West”, cheia de “saloons” com bebidas e jogos animados pelas “barmaids”. Na década de 30 do século XX apareceram os casinos com as “taxi-girls”, então em moda em Joanesburgo, e donde veio depois da última guerra outra vaga de “night-clubs”, “cabarets” e “dancings”. Tudo isto em Lourenço Marques, a conhecida Xilunguine, ou a antiga Delagoa Bay. De Reinaldo Ferreira a José Craveirinha, passando por autores diversos, há textos notáveis sobre a Rua Araújo. Há personagens míticas, como Daíco, musas ou deusas.

 

O jazz, que lhe chegava da longínqua telefonia primeiro, depois dos discos que os marinheiros que faziam a rota do Cabo e aqui aportavam lhe ofereciam, fará de Ricardo Rangel o indutor desta sua paixão entre nós. A Rangel, Moçambique deve a devoção pelo jazz. Não tocava, mas é dos seus maiores divulgadores e promotores. Conhece e fotografa os seus maiores intérpretes. Em 1971, o contra-baixista Charlie Haden, num concerto em Portugal, interpreta “Song for Che” e dedica-a a revolucionários de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Ricardo está na plateia e exulta. Esteve com os seus mitos: Dizzy Gillespie, Miles Davis, Thelonious Monk, Ornette Coleman. Fotografou-os. Apostrofou-os. Os lugares de culto do jazz na cidade guardam a sua presença: Topázio, Zambi, Sanzala, Costa do Sol, Princesa, ou Chez Rangel na Estação dos CFM. Abdullah Ibrahim, aliás Dollar Brand, descobriu na casa de Rangel um disco seu que ele próprio não tinha.

 

O título imaginoso de José Craveirinha – “Pão Nosso de Cada Noite” – está na origem do livro-álbum, de Ricardo Rangel, publicado nos seus 80 anos, em 2004. O fotógrafo deambulara pelo “Notícias”, “A Tribuna”, “Diário de Moçambique” e “Notícias da Beira”. Estivera na fundação da revista “Tempo”, outro marco. Tudo isto no tempo anterior à independência. Regressaria ao “Notícias” em 1977. Em 1981 torna-se o primeiro director do semanário “Domingo”. Mais tarde irá criar o Centro de Formação Fotográfica, onde se manteve activo – na companhia cúmplice e firme de Beatrice – até ao fim e empreendeu como formador e como uma reserva de sabedoria.  Os mais jovens profissionais encontravam nele disponibilidade para partilhar os seus vastos conhecimentos e os seus avisados ensinamentos. Mas também o homem assertivo, incisivo, crítico, indignado. O Mestre.

 

Não tinha um génio fácil, antes pelo contrário. Era difícil, irascível. Por vezes impulsivo ou truculento. Vituperava a mediocridade, desgostava-lhe o paupérrimo jornalismo, ou a ausência dele. O seu “Notícias” passara a ser um jornal de anúncios e não de notícias. Vociferava, zangado, contra o estado das coisas. Era um conversador brilhante, maravilhoso, contador de histórias, tinha um sorriso rasgado e os olhos e os zigomas que o aproximavam das suas origens orientais. Tinha um olhar brutal, indagador, frontal, poderoso. Por vezes, intimidatório. Mas era fraternal, de uma ternura no sorriso e no olhar, amigo dos seus amigos. No fundo, as suas fotografias transmitiam essa ternura, que ele disfarçava.

 

Fotojornalista de longo curso, homem profundamente enraizado na história do seu país e do seu povo, Ricardo Rangel testemunhou, não indiferente, uma longa era da vida de Moçambique, tendo-a documentado, como jornalista e como artista. No Centro que criou registou o nosso país em imagens. Um trabalho ciclópico e primordial. É um dos seus legados. Como as suas belíssimas e pungentes fotografias que são o primeiro rascunho da História. O jornalismo – o fotojornalismo – é também isso: o primeiro esboço da História.

 

Ricardo Rangel era um prodigioso homem do “instante decisivo”, com uma intuição, uma sensibilidade, uma prática e poética que estão na origem de fotografias que fixavam, na “linguagem do instante”, o momento, a essência e o significado da nossa História no século XX. É o fotógrafo de Moçambique. Mas é também um grande fotógrafo de África. Num texto remoto disse de Ricardo Rangel: “Que belo o teu ofício e dos que te antecederam e daqueles que se seguem, este de nos devolverem algo que é nosso antes de nos ter pertencido”.

 

Foi sobretudo um fotógrafo do olhar. Um dia ofereceu-me uma fotografia da mulher da gabardine com um olhar dilacerantemente melancólico. Ela está na célebre rua, tem uma cabeleira emprestada e nota-se-lhe uma profunda tristeza. Tem a mão esquerda sobre a cintura. Há silhuetas de uma parelha ocasional por trás. Esta, como tantas outras fotografias de Ricardo Rangel, faz parte de uma poética partilhada por uma geração única. De um mito geracional. De uma estética e poética. De uma ética. Guardo-a ciosamente, como guardo a lembrança feliz do amigo.

 

Ricardo Rangel, que morreu aos 85 anos, a 11 de Junho de  2009, nascera a 15 de Fevereiro de 1924, há precisamente 100 anos! É uma efeméride que nos diz muito. A despeito de sermos um país do descaso, da desmemória ou do esquecimento. O seu nome está entre os nossos maiores intérpretes: José Craveirinha, Noémia de Sousa, Luís Bernardo Honwana, Malangatana, Alberto Chissano ou Fany Mpfumo. Os nossos instauradores. Os grandes intérpretes da moçambicanidade.

 

Cidade do Cabo, 15 de Fevereiro de 2024

domingo, 04 fevereiro 2024 13:13

Os Mesmos Ecos da Tua Voz

Eduardo Mondlane completaria 104 anos se continuasse no nosso seio. A sua amada de sempre, Janet Rae Johnson Mondlane, caminha de forma robusta para os 89 anos. A meio da atmosfera da festa de todas as festas, recebi e li, com agrado, uma das cartas que Mondlane escreveu para o seu maior amor, Janet. O simbolismo destas cartas se encaixa num plano que se situava muito para além do simples amor, e fazia jus, contextualmente, à grandiosa epopeia que foi a luta de libertação e independência de Moçambique. Estas são as cartas que fizeram a nossa liberdade e o sonho de vivermos como moçambicanos e sem distinções.

 

Estas relíquias de um passado que se quer manter presente, revisitam o tempo de todos os tempos. Relembrar as intimidades do casal equivale a abrir uma janela para o passado, para vislumbrar o arco-íris da emancipação e apreciar como cada linha e cada página traçada são o elo que reconecta o presente que um dia foi passado para que todos tivéssemos um melhor futuro. Segue abaixo um trecho:

 

"... O mundo está à espera do momento em que o homem conhecerá os outros em termos do seu valor humano, e não, em termos de cor e de língua. As culturas estão a fundir-se lenta, mas, seguramente. Há uma comunicação cada vez mais rápida, tanto física como espiritual. ... Tudo isto significa que tu e eu podemos ser cidadãos do mundo se, assim, o desejarmos... O mundo tem fome de pessoas que se atrevam a sair e a conhecer outros seres humanos. Não me interpretem mal, não quero dizer que uma cultura seja má ou inadequada. Mas, quero dizer que qualquer cultura pode ser inadequada se fizermos dela um ídolo. Embora, amemos a nossa própria cultura, não devemos esquecer que ela é uma parte e apenas uma parte de um mundo maior - a humanidade. Esta ideia é aceite por milhões de pessoas hoje em dia, mas é difícil encontrar alguém que se aventure a ir mais longe, excepto muito poucos. Sejamos, tu e eu, esses poucos. As gerações futuras vão agradecer-nos por termos começado, mesmo que os nossos nomes desapareçam na confusão do progresso." Eduardo Mondlane para Janet Books.

 

Cartas Editadas. Ecos da Tua Voz 1920-1950.

 

Quem sabe poderemos ter, em 2024, a próxima edição do “Ecos da Tua Voz”.

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