No dia 5 de Janeiro de 1993, passam hoje 30 anos, Noémia de Sousa ligou-me, com voz embargada, a dar-me a notícia da morte, em Queluz, do poeta moçambicano Fonseca Amaral. Eu vivia, à época, em Lisboa, e não era incomum encontrar-me com Noémia de Sousa, Rui Knopfli, Eugénio Lisboa, Fonseca Amaral ou Ruy Guerra. Aliás, uma vez chamei atenção do Ruy para o facto de ele ser vizinho do Knopfli e da Noémia, seus companheiros de adolescência, nos anos em que o cineasta viveu em Lisboa. A última vez que vi o Fonseca Amaral foi numa tertúlia em casa do Lisboa, em finais de 1992. Estavam todos esses nomes ínclitos da nossa literatura, à excepção de Guerra.
A primeira vez que ouvi falar do Fonseca Amaral foi num texto evocativo do Rui Knopfli, no caderno de poesia “Caliban”, número 2, de novembro de 1971, que ele fazia editar, na companhia do poeta Grabato Dias. Escrevera o autor das “Mangas Verdes com Sal”: “Fonseca Amaral é, por direito e mérito próprios, um dos nomes mais altos e representativos da Poesia em Moçambique e, simultaneamente, por desleixo ou abulia, um dos menos conhecidos e apregoados, espécie de grande ausente nos vários certames em que vamos acrescentando pátina às nossas acanhadas glórias caseiras.” Assim começavam as “Notas para a recordação do meu mestre Fonseca Amaral”, nas quais se acrescentava: “Tímido, reservado, inseguro de si próprio, que não da sua poesia, membro daquela família de criadores que, cumprindo-se embora, se apagam e auto-anulam não se sabe bem porque estranhos caprichos da vontade, é o poeta em larga medida responsável pela pouca, ou nenhuma, divulgação de uma obra merecedora da mais vasta audiência”.
A geração que desponta para a literatura nos anos ulteriores à II Grande Guerra muito lhe deve. Esta geração (à falta de melhor termo, di-lo Knopfli) incluía José Craveirinha, Noémia de Sousa, Ruy Guerra (e Rui Guedes da Silva, Rui Nogar e o pintor António Bronze e o próprio autor daquela homenagem.
Todos me falavam do Fonseca Amaral. Todos diziam bem do Fonseca Amaral. O Craveirinha, a Noémia, todos. Em Janeiro de 1990, munido de um gravador e um bloco de notas, levado pela mão do meu amigo Álvaro Belo Marques, fui bater-lhe a porta. Sabia que era um homem de certo modo sibilino, esquivo, tímido.
A conversa que mantive com ele foi espantosamente agradável. Emocionante até, eu diria. Nascido em Viseu, em 1928, João da Costa Fonseca Amaral fora para Moçambique com apenas três anos de idade. A sua infância – e por aí iniciamos a nossa conversa – fora passada no Xipamanine, nas terras do “Ka Amaral” (seu avô) –, com amigos negros com quem falava Ronga. Também tinha amigos de outras origens e que se misturavam naquelas periferias: muçulmanos, indianos, chineses. Passará pelo Chamanculo e, depois, a ascensão social levá-lo-á ao Alto-Maé, ao Bairro Central e à Polana. Na adolescência foi vizinho do Eugénio Lisboa, que irá, muitos anos mais tarde, prefaciar o livro “Poemas”, editado postumamente em 1999, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Falámos da infância, da juventude, sobretudo da juventude literária. Pus-lhe, entre muitas questões, uma que também pusera à Noémia: por que razão é que eles haviam colaborado na revista da Mocidade Portuguesa? Fonseca Amaral: “Por ingenuidade, por sacanice”. Disse-me ele: “Era uma sacanice ingénua”. Julgavam que poderiam tomar de assalto a publicação. Tinham o ideário oposto ao defendido pela Mocidade, tanto mais que alinham com o MUD-Juvenil e, mais tarde, são presos: ele, Rui Knopfli, Ruy Guerra, os mais jovens; ou aqueles que ele chamaria de “os trutas”: Henrique Beirão, Sofia Pomba Guerra, Sobral Campos ou João Mendes, todos eles deportados para Portugal, presos em Caxias.
Sem provas, seriam libertados após o julgamento, mas o João Mendes segue degredado para Cabo Verde. João Mendes, é preciso lembrá-lo, irmão de sangue de Orlando Mendes, irmão de coração da Noémia de Sousa, que lhe dedicará Sangue Negro. Influenciados pelos neo-realistas, irão estes jovens lançar “os tentames de uma literatura de raiz marcadamente moçambicana”, como assinalará Knoplfi. Não é alheia, no entanto, a figura de Augusto dos Santos Abranches, que traz a Moçambique a experiência do “Novo Cancioneiro” de Coimbra e que divulga, com Fonseca Amaral, autores neo-realistas, da “Presença” e do “Orpheu”. Uma verdadeira agitação cultural. Aliás, Amaral começou a publicar poemas na página literária “Sulco” do jornal “Notícias”, dirigida justamente por Augusto dos Santos Abranches. Isto nos anos 40, na companhia do poeta Alberto de Lacerda.
Foi funcionário dos Caminhos de Ferro. Há, na história da nossa literatura, da nossa cultura e da nossa inteligência, muitas figuras que passaram pelos Caminhos de Ferro. Um dia tenho que me atardar sobre o Caminhos de Ferro na vida de escritores, jornalistas ou intelectuais, que tiveram um papel activo na história cultural e política de Moçambique. Há uma importância simbólica que precisa de ser melhor escrutinada.
Contou-me o Fonseca Amaral que foi o Augusto dos Santos Abranches que levou muitos dos jovens a desenhar, entre eles, o Rui Knopfli. É curioso: não me lembro de termos falado de Cassiano Caldas (que também foi funcionário dos Caminhos de Ferro), uma figura decisiva para a geração da Noémia e do Craveirinha. Não só pelas leituras emprestadas, mas também pelo magistério político. Aliás, Noémia irá também dedicar a Caldas o seu livro. Seria, aliás, ela que me levaria a conhecê-lo. Infelizmente, não o entrevistei. Mas aí está outra grande figura irrefutável para a nossa nacionalidade, que fazemos questão de obliterar.
Em 1955, Fonseca Amaral vai para Portugal onde permanece 20 anos. Escreve para a “Voz de Moçambique”. Traduz. A sua produção própria é, a despeito, avara. Regressado nos alvores da independência, entre o Ministério da Informação ou o Instituto Nacional do Livro e do Disco (INLD), em tarefas sempre urgentes e agitadas, num tempo que avulta a falta de quadros, onde é preciso fazer tudo, Amaral também não escreve. Sente-se, no entanto, esgotado.
A sua poesia se constituíra numa linha de cota do que viria a ser a nova poesia produzida em Moçambique. Mesmo assim parecia-lhe datada, não lhe apetecia reuni-la. Insisti com ele: “Fonseca Amaral, eu quero lembrar-lhe isto que você sabe melhor do que eu: os seus textos, mesmo datados, revestem-se de importância histórica e documental. As gerações presentes não têm à disposição a sua poesia em livro.” Ao que ele irá retorquir-me: “Nelson, eu sempre fui um homem de produção muito escassa. Os poemas, alguns, são dolorosos; doem muito. Para já não quero sofrer. Os poemas custam-me muito. Não é o acto, a caneta, o papel e a máquina. Doem muito. E agora devo fugir à dor. Sofri muito”.
Lembro-me como se fosse hoje. Foi uma confissão pungente. Vi, na sua revelação, um homem sincero e honesto. E não quis escavar mais a sua dor. Porém, ainda quis saber se ele escrevia. Disse-me que sim, às vezes, por catarse: “Para me equilibrar. Não tem interesse. São coisas muito pessoais. Tem que ver com a vida afectiva”. Divergimos, então, do tema que lhe doía, falamos dos extenuantes 5 anos que vivera em Moçambique no pós-Independência, das suas frustrações, do seu esgotamento, do regresso a Portugal, onde a mulher tinha uma carreira que lhe garantiria a reforma. Foi muito amável e senti que tinha sido muito sincero ao lembrar as suas memórias da sua já longa trajetória.
A última vez que o vi seria no aludido convívio em casa do Eugénio Lisboa. Eu tenho na memória de que o jantar, no qual estavam a Noémia e o Knopfli, aconteceu em casa do Lisboa. O poeta Eduardo Pitta, que também participou do convívio escreve no seu livro de memórias de que a nossa pândega literária ter-se-á dado em casa do Knopfli. Estou dividido entre a lenda e a realidade. Vou manter para mim que foi em casa do Lisboa. Pouco importa agora isso. Recordo-me, sim, do Fonseca Amaral, ali, pela última vez. Ele subscreveria o mito: com aquele seu ar mefistofélico acompanhou, discreto e elusivo, aquele jantar festivamente moçambicano.
Hoje já ninguém fala do Fonseca Amaral. Os seus companheiros estão quase todos mortos. A nossa memória literária ou cultural é dolorosamente maniqueísta. Falta-nos parcimónia e critérios de valoração que tenham empatia e critérios de abertura. Falta-nos, no fim, uma memória que não seja assaz tribal. Temos a noção de que tudo é fruto de geração espontânea. Quis recordá-lo hoje, quando passam 30 anos sobre a sua morte, creditando-lhe, nesta brevíssima evocação, como o fizera Knopfli, e alguns outros, a importância capital que ele tem na construção do nosso cânone literário – do cânone literário moçambicano. Devemos-lhe isso. O magro espólio que deixou, e que felizmente se encontra reunido em livro, é dos mais significativos nos anos que marcam o nascimento daquilo que hoje chamamos literatura moçambicana, entre os anos 40 e 50 do século XX. Ele é um dos seus fundadores e merece o nosso preito.
Cidade do Cabo, 5 de Janeiro de 2023