Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

sexta-feira, 27 maio 2022 07:06

As imagens do nosso ex-ministro e deputado camarada Manuel Chang que me foram chegando, ontem, do Kempton Magistrate Court, em Kempton Park, Joannesburg, África do Sul, são de uma pena arrepiante. Confesso que fiquei, em algum momento, comovido. Afinal sou humano. 

 

Por falar em humano, o Chang que vi ontem não tinha atingido o estatuto de pessoa, muito menos de humano. Era simplesmente de um Chang biológico. Um organismo vivo que pertence a nossa espécie. Aquilo que o vulgo chama "ser vivo". Um espécimen de raça humana. Uma amostra de células vivas. Um amontoado de carnes e ossos envolto em tecidos. 

 

Há uns dias, Manuel Chang era Manuel Chang. Pessoa. Ser humano. Super-ministro. Candidato à Presidente da Efe-Eme-Efe. Intelectual. Deputado. Camarada. Quadro. Compatriota. Senhor. Doutor. Excelência. Excelentíssimo. Digníssimo. Prezado. Respeitado. Um homem. Um ser moral e consciente, com arbítrio próprio. Uma grande personalidade. 

 

Hoje tudo desmoronou. Uma carreira profissional e política de fazer inveja caíram perante uma ambição inconsequente. É difícil de compreender. O homem enfiou centenas e milhares de hospitais, escolas, bibliotecas, pontes, quilómetros de estradas, medicamentos, livros, furos de água, latrinas, etecetera, na sua conta. 

 

E, hoje, o que sobrou dele? Um monte cheio de nada. Esteja ele cá ou lá, preso ou livre, extraditado ou não, Chang nunca será o mesmo. Não irá a tempo de recuperar "a pessoa" que ele construiu em mais de 60 anos de vida. O Chang que vi ontem, as calças lhe caem. O casaco nem parece dele. O Rolex treme. Este Chang não é o mesmo. Não é o "nosso". Este perdeu a alma. Empalideceu. Um aborto ambulante.

 

Mas, enfim, diria Robert Musil, "uma pessoa faz o que é, e se torna o que faz".

 

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segunda-feira, 20 março 2023 11:26

mia couto

Publiquei no passado sábado um texto nas redes sociais encorajando os jovens a perpetuar a memória do cantor Azagaia. Alertei sobre a necessidade de se protegerem contra o aproveitamento oportunista de partidos políticos. Enviei esse texto para a Carta de Moçambique quando as forças polícias começavam a reprimir violentamente a manifestação de jovens em Maputo.

 

Ainda esperei por alguma explicação, algum pedido de desculpa, alguma razão que explicasse esse acto de violência contra uma marcha que estava devidamente autorizada. Esperei em vão. Durante todo o dia os noticiários dos principais canais televisivos reagiram como se nada tivesse acontecido. Nem uma linha por parte dos jornalistas. Nem uma palavra por parte de qualquer dirigente. Este silêncio constitui uma espécie de reedição do gás lacrimogénio que abundantemente foi lançado nas ruas de Maputo. Esse silêncio é demasiado ruidoso, essa ausência é demasiado indiscreta.

 

Considero inclassificável o comportamento das forças policiais reprimindo o que devia ser protegido, criando desordem onde havia ordem, atropelando a lei perante um evento legal.

 

Os jovens que queriam desfilar nas ruas da capital estavam desarmados, não representavam nenhuma ameaça à ordem ou tranquilidade pública. O funeral de Azagaia mostrou o tamanho da frustração e descontentamento de muitos jovens nas cidades de Moçambique. A polícia que cumpriu “ordens superiores” agigantou esse descontentamento. Há ordens “superiores” que criam desordem e inferiorizam os seus autores.

 

A nossa maior conquista, depois da Independência, foi o calar das armas após dezasseis anos de guerra fratricida. Essa conquista aconteceu porque houve diálogo, houve vontade de escutar aqueles que pensam de modo diferente. Se fomos capazes de abraçar os chefes de um exército armado por que razão espancamos jovens que se apresentam desarmados, respeitando as normas democráticas do direito à palavra e à manifestação pública?

 

Não imagino o que motivou a “ordem superior” que deu luz verde à violência policial. Mas estou certo de que a única ordem superior correta apontaria exatamente na direção oposta. Uma ordem que encorajasse a escutar estes jovens que amam o seu país, uma ordem que protegesse o espaço onde se pudessem expressar livre e pacificamente.

 

Mia Couto

terça-feira, 14 maio 2024 10:03

JorgeFerrao221220

Depois das celebrações dos 50 anos do assassinato e desta nova Páscoa de Amílcar Cabral, abraçamos, com a mesma êxtase e fraternidade, o seu centenário natalício. Amílcar Cabral, possivelmente um dos mais celebrados líderes das lutas pela libertação e independência dos países africanos de língua portuguesa, nos convoca, serenos e incertos, em seu centenário, imbuídos desses nobres ideais e do sentimento patriótico de servir o povo, de lutar pela igualdade e por um amanhã melhor, sem ambiguidades. Esse era o cerne de seu pensamento e pelo qual ele dedicou sua vida e derramou seu sangue.

 

Reverenciado, enaltecido e glorificado como um dos mais carismáticos líderes da sua época, Amílcar Cabral era confesso admirador e amigo de Eduardo Mondlane, nosso herói nacional, muito embora, nem sempre, estivessem de acordo sobre as estratégias de luta e fundamentos da luta. O importante é que, após essa longa jornada, Eduardo Mondlane conseguiu retornar à sua aldeia como um combatente pela libertação e pelo progresso de seu povo, enriquecido pelas experiências muitas vezes perturbadoras do mundo contemporâneo. Ele ofereceu um exemplo frutífero, enfrentando todas as dificuldades, resistindo às tentações e rompendo com os compromissos de alienação cultural e política, ao mesmo tempo em que se reconectou com suas raízes, identificou-se com seu povo e dedicou-se à causa da libertação nacional e social. Eis o que os imperialistas não lhe perdoaram, afirmava.

 

Amílcar Cabral foi um dos maiores e mais críticos pensadores do século XX, de acordo com muitas correntes de pensamento e escritos. Um pouco por esta razão, ele continua presente nas cátedras, citado em diferente bibliografia e eternizado em telas. O seu pensamento continua subjacente em duas correntes principais, sendo a primeira a que se consubstancia no facto de, através da sua prática e acção revolucionárias ter dado um passo significativo no sentido de renunciar à condição de subalternidade e de dependência a que o colonialismo português o tinha votado, a ele e ao seu povo, enquanto colonizados.

 

A segunda corrente, eventualmente, a mais estudada pela academia mundial era o seu pensamento crítico, ao não se ter conformado com alguns dos paradigmas do pensamento social vigentes na época, inclusive os das ciências sociais. Estas reflexões de Amílcar, que se distanciaram das lideranças subsequentes, pós-independência, encontram expressão nos dois volumes das suas obras, nomeadamente “A Arma da Teoria”, de 1980, para o primeiro, e “A Pratica Revolucionaria: Unidade E Luta II”, de 1977, para o segundo.

 

Para alguém que não teve a oportunidade de o conhecer fisicamente, e sem nenhuma aparição em Moçambique, diferente de Julius Nyerere, Agostinho Neto, Keneth Kaunda, todos eles já centenários, não o pode conceber dissociado e distanciado de Eduardo Mondlane, Paulo Freire e tantos outros. Num eloquente discurso na Universidade de Syracuse, nos Estados Unidos da América, onde Mondlane se formou e foi homenageado, Amílcar afirmou “[…] quisemos demonstrar a nossa amizade militante e solidariedade ao povo de Moçambique e ao seu bem-amado chefe, o Dr. Eduardo Mondlane, ao qual estivemos ligados por laços fundamentais na luta comum contra o mais retrógrado dos colonialismos, o colonialismo português. A nossa amizade e a nossa solidariedade são tanto mais sinceras quanto nem sempre estivemos de acordo com o nosso camarada Eduardo Mondlane, cuja morte foi, aliás, uma perda também para o nosso povo […]”

 

Faz, pois, sentido que os nossos países e, sobretudo, os jovens retomem a estes testemunhos, desse tempo, cujos pensamentos continuam presentes. É fundamental revisitar as personagens que fizeram e fazem nossa história, sociedade e cultura e, principalmente, os cultores que assumiram protagonismo e falaram em nome de tantas gerações.

 

Defendo, vezes sem conta, que estes tempos exigem que se faça algo contra o esquecimento, contra o vexame do alheamento e, sobretudo, contra a indignidade do desconhecimento e essa amnésia colectiva que aos poucos se apodera de todos nós.

 

O centenário de Amílcar Cabral representa uma extraordinária oportunidade para revisitarmos seu caminho, explorando seus pensamentos, atitudes, valores, aspirações e inquietações. Desde sua participação na Casa dos Estudantes do Império até a clandestinidade na metrópole, passando pelas associações de estudantes africanos e enfrentando prisões arbitrárias e massacres, devemos reverenciar os jovens que, diante de todos os perigos, expressaram e demonstraram com bravura um amor ilimitado e um dever patriótico incomum para com Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola e São Tomé e Príncipe.

 

Amílcar Cabral, esse engenheiro Agrónomo, líder da revolução da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, continua tão presente e consequente pelo seu pensamento político e libertador, sua visão cultural e pelo pragmatismo com o qual conduziu os destinos da luta de libertação nacional, mas, também, pela utopia do seu sonho e querer. Essa utopia que o posicionou como exímio conhecedor e detentor de reflexões políticas e revolucionárias muito para além do seu tempo e espaço. Permanecem célebres suas análises e memórias sobre a essência desse colonialismo, a forma inglória com não foi entendido o clamor dos povos e, sobretudo, a maneira como se oprimiu povos africanos e se estendeu essas práticas fascistas para o seu próprio interior. Por essa razão, as recentes celebrações do 25 de Abril, 50 anos da revolução dos cravos, simbolizam e seriam consequência directa das próprias lutas de libertação nas colónias do ultramar.

 

Amílcar Cabral afirmava que a política é repleta de contradições, destacando a necessidade de diálogo aberto e discussão franca sobre questões que conduzem às melhores soluções para o futuro. Para ele, a política também era um exercício de diálogo contínuo. Essa contradição intrínseca encerrava a essência do diálogo e justificava a luta pela dignidade de seu povo, pelo resgate de seus valores morais e pelos direitos fundamentais e pela paz para os povos africanos.

 

Amílcar Cabral considerava que a essência de sua luta residia na busca pela possibilidade e realização da construção de pontes e consensos. Por isso, participou em sessões das Nações Unidas, visitou universidades, corporizou a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP) e criou as primeiras assembleias populares nas zonas libertadas. Sob sua liderança, mais de 80% da Guiné-Bissau se libertou, até ao começo dos anos 70. A luta de libertação, afirmava, só poderia ser pela dignidade dos povos do seu país, a liberdade e a possibilidade de poderem usufruir dos mesmos direitos e recursos.

 

Continua célebre a sua afirmação segundo a qual “[…] a história ensina-nos que, em determinadas circunstâncias, é fácil ao estrangeiro impor o seu domínio a um povo. Mas, ensina-nos, igualmente que, sejam quais forem os aspectos materiais desse domínio, ele só se pode manter com uma repressão permanente e organizada da vida cultural desse mesmo povo, não podendo garantir, definitivamente, a sua implantação a não ser pela liquidação física de parte significativa da população dominada […]”. Portanto, apelar à indestrutível resistência cultural, assumiria uma das formas de contestar, com vigor, o domínio estrangeiro.

 

Para Amílcar Cabral, e por vezes em rota de colisão com seus próprios camaradas, os movimentos de libertação deveriam saber preservar os valores culturais positivos de cada grupo social bem definido, de cada categoria, realizando a confluência desses valores no sentido da luta, dando-lhes uma nova dimensão, a nacional. Perante esta necessidade, a luta de libertação era, acima de tudo, uma luta tanto pela preservação e sobrevivência dos valores culturais do povo, como pela harmonização e desenvolvimento desses valores num quadro nacional.

 

À semelhança de Frantz Fanon, autor da célebre obra “Os Condenados da Terra”, de 1961, o colonialismo foi um sistema que construiu e perpetuou estereótipos, destruindo valores e moral. Acredito que Amílcar estudou Fanon e Albert Memmi, manifestando em diferentes discursos uma grande preocupação e desilusão, evidenciadas pelas várias experiências de governação em África após 1960. Dizia Cabral que após a independência, tudo deveria ser feito para que as pessoas passassem a viver melhor que antes, que essa era a forma de legitimação desse exercício e sacrifício libertador. Se depois das independências as pessoas passassem a viver pior, então, não valia a pena ter lutado pela independência.

 

Amílcar Cabral, descrito por Paulo Freire como um pedagogo do anticolonialismo, defendia três eixos fundamentais na governança dos países africanos após as independências conquistadas por revolucionários: a necessidade de governar com decência, honestidade e patriotismo. Estas são questões de grande relevância na contemporaneidade.

 

Nesta breve e desproporcional retoma ao pensamento de Cabral, resgatando sua memória e dignidade, amor pelo continente, esquartejando os tremendos desafios e a complexidade dos tempos, batemos de cara com as vicissitudes, experiências das lutas pela emancipação, equações para o desenvolvimento económico, afirmação da identidade, congregação dos ideais de nação e institucionalização de novas regras de convivência social, e damos conta que Cabral esta desaparecido. Precisa de ser resgatado. Nem que seja por um dia.

 

A gestão dos novos poderes políticos, permaneceu como processos inacabados, de enorme complexidade e, nem sempre, predefinido por lógicas e soluções reconciliatórias. Entre a misoginia, os sonhos políticos e as virgindades discursivas até as ambiguidades, assimetrias e desigualdades, esses países foram construídos primeiro como estados socialistas, depois como sociais-democracias, mas logo foram forçados a converter-se em sistemas pluralistas, multipartidários e de economia aberta.

 

As instituições globais promotoras do neoliberalismo, explorando as fragilidades socioeconómicas e institucionais e as clivagens culturais e políticas locais, ditam os vectores e modelos macroeconómicos de desenvolvimento que, em larga medida, servem os seus próprios interesses, fragilizando as correntes do não-alinhamento, cooperação sul-sul e a permanente dependência socioeconómica e tecnológica.

 

Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane poderiam não ter pensado no antídoto para estas situações, nem mesmo teriam respostas para fazer face a ferocidade do capitalismo global, do neoliberalismo, onde os países, como o nosso, se apresentam desprovidos desses recursos tecnológico e científico, com as instituições fragilizadas, e que se tornam presas fáceis. Os condicionalismos fazem com que as lideranças não se assumam e que os destinos nacionalistas permaneçam sonhos adiados. Agora, mudamos os termos e já são outros conceitos de endogeneidade, desenvolvimento tecnológico, digital e ambiental.

 

Como muitos outros países da periferia, acabamos por nos configurar como Estados de descontinuidades e processos políticos, económicos, sociais e culturais inacabados. Os líderes de ontem nem sequer acreditam que viramos palco dos descaminhos e incongruências, que inviabilizam consensos e retardam o passo do desenvolvimento harmonioso como nação, gerando tensões, conflitos sociais e terrorismo.

 

Cabral, esse multilateralista nato, não acreditaria, nem no pior dos seus sonhos, que as respostas de ontem continuam perguntas, ainda, de hoje, e que as incertezas se perderam com o tempo. Amílcar e Mondlane deitariam lágrimas de tristeza constatando que 50 anos depois do movimento das independências, estas terras continuam convivendo com graves crises económicas e sociais, políticas e militares. Esta população de 24 anos ou menos, procura pelos seus próprios ventos de mudança, para desfrutar do potencial e das oportunidades. “Amo Africa e quero um dia regressar”.