Já não sou propriamente um homem de euforias, as festas do Natal e do fim-de-ano não mudam muito a minha rotina. A cidade transforma-se, eu não. Há um entusiasmo na vizinhança, denunciado pela música alta demais, então tenho que fazer um esforço doloroso para suportar aquilo. As compras que vou fazer são as mesmas de sempre, poucas, ao limite das possibilidades. Mas vai ser difícil dormir com este barulho todo, que não me permite sequer assistir a televisão ou ouvir transquilamente a Rádio.
Se não fosse o David estaria lixado. Foi ele que ligou para o meu celular perguntando se queria dar uma volta, eu disse que sim, assim estaria livre deste inferno. David é um solitário como eu. Detesta barulho, nem que seja em festa. Cultiva o silêncio no bairro de Nhapossa onde vive numa casa sem muro de vedação, para quê o muro se eu sou um homem livre! Nem grades tem nas portas e janelas, não preciso!
Então veio no seu carro, um Mitsubichi Pajero velhaco, porém em condições de nos levar para onde queremos ir nesta noite de quarto crescente. Olhou para mim e disse, estás jovial! Respondi com um sorriso, ao mesmo tempo que lhe perguntava sobre a trajectória que iamos seguir. David não tinha mapa traçado, eu também não. O que queriamos era encontrar um lugar tranquilo, sem música e esse lugar não sabemos onde está.
Saímos da Fonte Azul e andamos ao calha. Passamos pela Ponte Cais - uma obra inquebrantável - cujas lâmpadas de iluminação dependuradas nos postes, ao longo de toda a plataforma, tornam o lugar muito lindo à noite, sobretudo quando é contemplado a partir da zona da prancha. E hoje não está ninguém neste sítio que se tornou, durante tempos e tempos, um ponto importante de encontro da juventude, e o David disse, vamos ficar aqui um tempinho.
Sentamo-nos no passeio com as pernas suspensas para a água em maré cheia que se esbate na barreira, movendo-as em relaxamento como quatro badalos que, mesmo cansados, ainda têm duas almas fortes que as sustentam. Parecemos fedelhos, mas issos é mentira. As memórias que alimentam a nossa conversa não nos deixam enganar a ninguém, nem a nós própriios. Somos felizes assim, longe das nossas namoradas que decidiram passar com as suas famílias, e nós sozinhos.
A maré é calma, não se ouve nenhum som daqui onde estamos, a não ser o cantar do próprio silêncio e, de longe, o leve roncar dos motores fora-de-bordo das barcaças que vão e vêm com passageiros indo ao encontro dos seus sonhos e frustrações, cada um com o seu destino, como nós que estamos aqui, ruminando alegrias da infância e da adolescência e da juventude. Ninguém nos dá cavaco. Temos um catalisador no coleman que alimenta os nossos vaipes. Cada vez que vai um copo, vamos ficando mais lúcidos, e assim amanheceu sem darmos conta, felizes da vida.
São cinco horas da manhã e já não dá para mais. Voltamos para casa animados e satisfeitos pela decisão que tomamos de nos isolar, e no dia 25 já não houve o barulho do dia anterior, de modo que deu para repousar e agradecer a Deus por nos ter protegido.