Seria definitivo se Chang fosse metido esta manhã num avião e trazido a Maputo, evitando-se assim qualquer possibilidade de recurso por parte da Justiça americana junto do Tribunal Supremo da África do Sul. Se isso não acontecer – se Chang não ser trazido imediatamente – é bem provável que os americanos usem da sua última janela de oportunidade: esse recurso junto do Supremo sul-africano, complicando as coisas para os defensores da extradição para Moçambique, nomeadamente toda a trupe que já está a celebrar.
Ontem, o “press release” de Masutha, dando conta da sua decisão de extraditar Chang para Moçambique surpreendeu meio mundo. Uns abriram seus “moets” com caviar; a plebe soltou gemidos de dor, gritos de revolta.
“Carta” chegou à conversa com um dos advogados de Manuel Chang, Rudi Krause. Ele disse que ainda não tinha sido notificado da decisão. O “press release” também não constava do site do Ministério sul africano. Nada que apontasse para “fake news”.
A decisão suscita, no entanto, algumas interrogações. Um analista político sul-africano comentou para a “Carta” que a decisão de Masutha era tremendamente estranha, uma vez que coloca Pretória em rota de colisão com Washington em matéria de cooperação judiciária internacional, sem tirar os méritos do pedido de extradição de Maputo.
Mas a decisão de Masutha também foi colocada em contexto. Ele, um dos últimos resquícios de Jacob Zuma no anterior governo de Cyril Ramaphosa, está de malas aviadas. “Não é alguém que tenha um futuro brilhante e pode ter usado este caso para fazer um grande pé-de-meia”, comentou o analista. Uma sugestão de que a decisão tenha sido comprada (vendida). Na RAS isso não surpreenderia, tanto mais que Ramaphosa, que segue vendendo sua cartilha anti-corrupção, continua amarrado num colete de forças dentro do Conselho Nacional do ANC. Isso explica a ascensão da antiga Ministra das Relações Exteriores, Lindiwe Sisulo, para a vice-Presidência da RAS.
O actual governo de Ramaphosa reflecte, pois, os dois campos do ANC: o dele, Ramaphosa, mais progressista e anti-corrupto, e o de Ace Magashule, mais “racialista”, esquerdista e radical. Masutha pode ter usado essa clivagem para tomar uma decisão que não seria do agrado de Ramaphosa (pelos danos que causam à imagem externa de Pretória, sobretudo no contexto da sua mobilização por investimento estrangeiro) mas que se encaixa nos quadros mentais de Sisulo e toda esse corte de radicais do ANC (Sisulo, nos últimos anos, como Ministra, mostrou seu anti-americanismo convicto, defendendo Nícolas Maduro nas Nações Unidas e colocando a África do Sul na rota de colisão com Israel).
A decisão de Masutha deve ser olhada, pois, dentro deste prisma: há no Governo sul-africano e dentro do ANC quem vai sempre usar suas armas para colocar Cyril Ramaphosa numa saia justa.
As próximas horas (ou dias) serão fundamentais para se perceber melhor se a decisão de Masutha é definitiva. Isso dependerá da reação da Justiça americana, e de uma reação imediata, contestando-a. Se isso não acontecer, então a via para Chang estará totalmente aberta. E se ele regressar ainda hoje a Moçambique, pode evitar o recurso americano.
Mas será que os americanos vão recorrer?, eis a questão.
Uma ausência de recurso americano poderá suscitar outras leituras: a de a decisão de Masutha ter sido negociada entre os três países. Recordam-se de Tanveer Ahmed? O paquistanês que Moçambique decidiu, na semana passada, extraditar para o Texas? Ele pode ter sido uma moeda de troca? Talvez!
Ahmed tinha sido corruptamente ilibado por um tribunal de Cabo Delgado, em Janeiro, mas foi logo capturado por solicitação americana e trazido a Maputo. O Tribunal Supremo decidiu na semana passada pela sua extradição para os EUA mesmo sem acordo de extradição entre os dois países. O Supremo tomou a decisão com base na Convenção das Nações Unidas sobre Tráfico Ilícito de Drogas e Substâncias Psicotrópicas (é inusitado a justiça moçambicana tomar decisões legais com base em convenções, mas neste caso foi assim. Porquê?).
E foi interessante o “suspense” criado na véspera da leitura da sentença do caso. Também foi interessante uma declaração pública de oficiais americanos, semanas antes, segundo as quais Whashington não descansaria sem ver Tanveer Ahmed em solo americano. Terá sido ele o “quid pro quo” para a vinda de Chang para a casa? Será Tanveer, considerado um barão da droga, mais perigoso para a América que um ministro corrupto que alegadamente lesou umas dezenas de cidadãos americanos? É provável.
Um analista da RAS descarta a hipótese de negociação tripartida, alegando que Maputo não tem essa capacidade, suficiente “leverage”, mesmo apesar do gás do Rovuma. É uma leitura. Mas o regresso de Chang para Maputo só pode ser prejudicial para a justiça americana num aspecto: o ex-Ministro das Finanças era apenas um peão para um objectivo mas estratégico dos EUA, nomeadamente o de recolher evidências para atingir o Credit Suisse, enfraquecendo o banco suíço como um dos “playermakers” das finanças globais. Detelina Subeva percebeu isso e deslocou-se voluntariamente a Nova Iorque e já se considerou culpada, tendo obtido liberdade sob caução nos EUA.
Por último: a perspectiva de Chang regressar a Moçambique é uma vitória para o regime do dia, que andava nervoso com a possibilidade da sua extradição para os EUA e o potencial de danos que isso acarretava na eventualidade de uma delação do antigo Ministro. A lista dos negócios de Chang e seus associados em Moçambique é enorme e estava tudo em pulgas com a sua eventual extradição para os EUA.
Mas, para o grosso da opinião pública, a vinda de Chang é uma grande tragédia em dó maior, melodia pungente que fermenta um sentimento profundo de injustiça e a Frelimo vai ser certamente penalizada por isso. (Marcelo Mosse)