Escrevo este texto em memória de Raul Honwana, que viveu a vida inteira na profunda cegueira, porém gotejando luz para os outros, que não eram cegos como ele. Já o fiz antes, em muitas ocasiões, inclusive em ambientes de paródia, e isso reconforta-me. Dá-me a sensação de que há um rugido do tempo sobre mim, que me apela a urgência de viver. Percebi que a cegueira é uma intensa luz que só os os próprios cegos entendem, e quando comunicam connosco, surpreendem-nos com detalhes que, mesmo estando ao nosso alcance, não conseguimos decifrá-los.
Há duas semanas que venho acompanhando os movimentos de um casal em que o marido é cego, e a mulher desfruta em pleno das cores da natureza, andam sempre abraçados. Parecem dois siameses que não terão outra escolha que não seja a de descerem juntos pelos desfiladeiros íngremes da vida vida. Mas também, quando chega a vez de explodirem em gargalhadas, explodem juntos, como crianças que se contentam com uma simples pipoca.
A última vez que os vi, estavam sentados na varanda da loja do Madobole (Fonte Azul – cidade de Inhambane), vendendo duas cabeças de repolho murcho. Ninguém se aproximava deles, provavelmente por serem andrajosos. Dói dizer isso, mas o cheiro que eles exalam, vai contribuir para o afastamento dos potenciais compradores. E os dois nem sequer sabem que são repelentes. Mesmo que chegasse alguém e comprasse todo aquele pouco, o dinheiro que iriam receber serviria para quase nada, mas esse pouco será muito na sua condição.
Aproximei-me deles, ignorando a repulsa que emanam. Estou cmpletamente arrebatado pelo cenário de amor que expelem, sem se importarem com tudo o mais à sua volta, nem com as pessoas que não vêm comprar o que vendem, sentados no chão. É tudo isso que perturba os meus sentimentos. É isso que me leva a chegar mais perto, não exactamente para inalar o cheiro nauseabundo do casal, mas para inalar o cheiro do amor, que tanta falta me faz.
Saudei-lhes e perguntei se podia tirar uma foto. Queria falar deles, partilhar a sua história nas redes sociais, mas o marido respondeu prontamente que não, porque, segundo ele, não se tira fotografia a uma mulher grávida. Capitulei. Não fiz mais perguntas, não queria continuar a ser incoveniente. Até porque estou saciado pela imagem esplendorosa, como o amor, que os dois vêm oferecendo-me há duas semans. Isso basta-me.
É isso: a mulher, jovem e linda, tristemente suja, estava grávida, e eu pensei: quando a criança nascer, o quê que a vão dar, se eles próprios não têm nada! Quem vai dar banho ao bebé, se eles próprios não tomam banho! E a resposta chegou-me imediatamente: se este casal não tem nada e vive feliz, então a criança que vai nascer, também será feliz. Sem nada. Como os pais.
Não se cansa de dizer que destruíram a beleza da Maxixe. Repete isso, sempre que procura o mar, a partir do antigo Hotel Golfinho Azul, e não o vê. O próprio Hotel perdeu o sentido da sua existência, por isso fechou e está a cair por si mesmo, implodindo no silêncio da dor. O que dói é que ninguém se importa com a derrocada desse símbolo tão importante, agora transformado. Em mamarracho.
O Hotel Golfinho Azul tem uma esplanada que se escancarava para a baía, deleitando não só os que nela desfrutavam da vida, mas os transeutes anónimos, aos quais bastava a espectacularidade do lugar, que entrava em harmonia com o miradouro, do outro lado da estrada. É essa memória forte que fere a poesia de Khudzi Nhassengo, mulher incapaz de reunir os pedaços espalhados na raiva de conviver com a anarquia. Com a incultura.
Ocuparam o miradouro, privatizaram-no, construindo um restaurante que leva o nome de “Stop”. Khudzi Nhassengo insurgiu-se contra esta acção, considerando-a uma violação ao nosso direito colectivo de estar ali, a contemplar a arrebatante paisagem que inclui o arquipélago de Mucucune e a Ilha de Inhambane. Gritou, implorando que não cometessem tamanha agressão ao meio ambiente, sobretudo à alma das pessoas. Ninguém lhe deu ouvidos.
O Hotel Golfinho Azul só se tornaria essencial com o miradouro. Sem isso, perderia os pulmões. Sem os pulmões, deixaria de respeirar, e sem respirar, morreria, como agora que morreu, sobrando apenas o esqueleto que vai sendo corroído pelo tempo. E o restaurante “Stop” só serve a elite, que goza num lugar que é nosso. Que pertence a toda cidade.
Maxixe era um lindo poema virado para o mar. Havia duas esplanadas que conviviam em consonância: de um lado a “Pousada da Maxixe”, do doutro lado o Hotel Golfinho Azul. E, como o belo atrai o belo, então baía e esses dois empreendimentos hoteleiros, cantavam a mesma música. Da beleza.
Khudzi Nhassengo recorda-se dessa espectacular imagem gravada na memória e no coração, e fica triste. Muito triste ao concluir que todos nós fomos desperezados. Ignoraram-nos como aos vermes. Fecharam a parte frontal da Maxixe e ergueram construções em toda a dimensão da fachada por onde passam os viajantes, sem poderem sequer sentir a aragem do mar e apreciar a natureza que trouxe de volta os flamingos.
Feriram a poesia de Khudzi Nhassengo com estúpidos edifícios, como no tempo em que as mulheres eram dolorosamente tatuadas no rosto, matando a janela inteira do corpo, e o poeta já dizia: o rosto é um pouco a janela da alma. E Maxixe perdeu essa alma. Para sempre!
Mandei várias mensagens (SMS) ao ilustre presidente do Município de Inhambane, com o meu nome devidamente assinado, a alerta-lo sobre a má qualidade das vias de acesso pavimentadas, que têm sido construídas nos bairros. Guimino ignorou-me. Recorri ao facebook na tentaiva de uma maior visibilidade, porém, o silêncio que me chegou foi pior que o primeiro. Cruzei-me com ele algumas vezes, e a minha expectativa era de que provavelmente fosse abordar-me. Nada!
O que me dói não é o silêncio do edil, mas sim, o facto de termos zonas de expansão com ruas cujo pavêt, para além de não assentar em bases sólidas e niveladas, está a desintegrar-se precocemente. Não precisamos ser engenheiros de construção de estradas para perceber que aquilo não tem absolutamente nenhuma qualidade, mas a caravana continua a passar, e eu sou integrante da matilha que não pára de ladrar. Em vão.
Não sinto que haja, por parte de Guimino, alguma perespectiva de futuro, como o fez Narciso Pedro, ex-presidente do Município da Maxixe, que deixou uma cidade infraestruturada de modo a suportar o crescimento. Os “maxixenses” têm orgulho desse homem audacioso, talhado para enfrentar pedregulhos, e foi contra toda a resistência, em nome do desenvolvimento. Em nome do futuro.
Guimino parece estar a pensar no agora, e essa não é a vocação de um dirigente elegido para trabalhar a bem da comunidade. Por exemplo, ainda não percebi a prioridade da rua que sai do “Mercado do Peixe” até ao cemitério Maometano. É uma via muito forçada, sem espaço para drenagem, e no dia que a chuva vier, há um grande receio de que as casas sofram por demais. O mesmo pode acontecer com a rua da “COGEMO”, até ao Posto Médico de Muelé.
De que valerá, o presidente Guimino fazer estas coisas apressadas, para logo a seguir desmoronarem? Que orgulho terá, do trabalho que está sendo feito neste momento? Eu falei-lhe destas minhas inquietações nas mensagens enviadas ao seu telemóvel, na esperança de que estivesse a contribuir para ajudar em alguma coisa. Enganei-me!
Benedito Guimino podia fazer muito mais sobre a limpeza da cidade de Inhambane, que já perdeu o estatuto de mais limpa do país. Podia nos ajudar no combate a poluição sonora, envolvendo as estruras do bairros, mas, ao que parece, há uma grande incapacidade ou desinteresse em investir nesta área importante, que interefere no bem estar da população. O próprio mercado central, é pólo de poluição sonora, e nem os polícias municipais, nem os vereadores, que passam por ali todos os dias, conseguem agir para travar esta agressão à tranquilidade.
Eu ainda disse, nas mensagens a que tenho feito alusão, ao ilustre Guimino, que ele devia lutar muito, para que, ao sair do cargo, andasse de cabeça erguida na sua cidade. Orgulhando-se do que terá feito. Mas, pelo que vejo, duvido muito que consiga isso, pela má qualidade das obras, em particular das vias de acesso, que deixam muito a desejar. Se calhar, também, por incapacidade de nos devolver a limpeza da cidade, e fazer qualquer coisa pelos mangais, tornados depósito de lixo. E por muito mais!
A pior coisa que te pode acontecer na vida, é chegares a um ponto em que não tens onde ir, e eu atingi essa nefasta fasquia. Perdi a capacidade de criar novos cenários. O mais grave é que nem a mim mesmo consigo recriar. Quero levantar voo e as asas vacilam. Recusam. Aliás, apercebi-me de que já nem asas tenho. Revisito os pulmões podres que tenho, queimados ao longo dos anos pelo fumo, e sinto que me resta pouco oxigénio. Vou às veias por onde o sangue vai passar, e o diagnóstico é por demais perfurante, o coctail de comprimidos que andei a tomar na busca incessante e inglória pela liberdade, e pelo levitar dos loucos, retiraram-me toda a vitalidade, sobrando apenas esta carcaça sem imunidade, que vai deabulando ao acaso à espera da derrocada final.
Todos aqueles que tentaram ajudar-me na luta contra o diabo que me domina e manipula, largaram as armas. Capitularam. Foram vencidos. E o que sobra é o meu esqueleto, que já não tem onde ir nesta longa espera de cair como um mabeco que caminha nas matas com as vísceras à mostra. Mas eu continuo a guerrear por dentro, contra essa sombra tenaz que me derrota todos os dias, por isso estou aqui hoje sentado como sempre, na minha marginal. É o único lugar onde posso ainda encontrar a paz enquanto aguardo pela hora. É bom estar aqui onde não passa ninguém. Quase ninguém. Ao contrário de outros lugares onde as pessoas estão sempre a fazer-me perguntas, como se eu soubesse alguma coisa.
Abdiquei das barracas, e estou aqui. Sem cerveja, sem nada, na ansiedade da espera pela morte que demora. A minha alma entra em harmonia com a carcaça putrefacta que me tornei, por isso já não tenho medo de morrer. Estou à espera tranquilamente como nunca. Vou escutando vozes em sussurro que me chegam aos ouvidos, como o hulular das palmeiras que se erguem do outro lado da baía. São vozes que falam em forma de música, ao mesmo tempo que oiço animais abomináveis vacalizando as canções de Lúcifer, cujo côro será o ranger dos dentes nas sombras da morte por onde eu já estou a passar sem temer.
Estou a ser disputado, e o que me rigozija é que o meu último reduto jamais será abalado. Continua a cantar mensagens que me afagam, dizendo, não te preocupes meu filho, Eu estou aqui, ao teu lado. Sorrio e já não me preocupo com os que olham para mim e dizem assim, este gajo, mais dia menos dia vai partir a cambota. O que eles não sabem é que a minha cambota, na verdade já quebrou, e o que me mantém ainda de pé são os estilhaços dos meus ossos que daqui a pouco vão descer.
É linda a morte, e eu vou morrer aqui, sentado neste banco contemplando os poucos flamingos que ainda sobrevivem à chacina. Vou continuar aqui sem cachaça, sem nada. Sem o conctail de comprimidos que me fez perder o horizonte. Sem fumo, sem nada, ouvindo de um lado a música sinistra orquestrada pelas farpas de balzebuba, e por outro lado as canções saídas das harpas que me dão paz nesta longa espera pela minha derradeira derrocada.
Mas também como é que você queria que um homem que passou a sua infância na cidade Beira, não tivesse dentes de tigre! Este senhor, apesar de ter nascido na Zambézia, o sangue dele, na prática, é sena. Escute bem o sotaque dele, veja a sua determinação, e a sua capacidade de entrar na cova dos leões e sair intacto. Como Daniel, após o decreto do rei Dario.
Eu não vim aqui falar de Direito, não sei nada de Leis, mas apenas manifestar a minha admiração pela forma como Efigénio Baptista, brilha, com luz própria, sem precisar de usar o martelo. Aliás, ele bem dizia ao Ndambi Guebuza, “você não precisa ser malcriado para fazer valer os seus direitos, não precisa ser mal educado”.
Efigénio Baptista não vocifera, mesmo que em muitos momentos, até aqui, tenha havido motivos para ele bater com o martelo na mesa e erguer a voz. Este felino não precisa mostrar os dentes para dizer às pessoas que ele é um dos animais mais letais da selva. Quem se encarrega disso é a sua perfomance, a sua serenidade e a sua argumentação demolidora, que não poupa nem os gurus da advocacia.
Este magistrado usa a sabedoria para desconstruir a narrativa de prováveis mafiosos. Uns mostrando astúcia, outros valendo-se da arrogância e malcriadice para dizerem que valem alguma coisa, ou valem muito, quando no fundo não conseguem ver longe. Efigénio Baptista está acima desse terreno, que agora engole, aos poucos, aqueles que nele se fundamenta(vam).
Eu não vim aqui fazer qualquer juizo de valor, mas apenas repetir aquilo que todos dizem na rua e nos chapas e em todo o chão. Há uma euforia global incontida perante um julgamento conduzido, como o povo diz, por um homem que tem “os dois” no lugar. Efigénio Baptista, não tem “matchende ya mbuzi” (testículos de cabrito), mas “matchende de tigre”. Para além de ser o orgulho dos senas e dos matchuabos, é o orgulho de todos os moçambicanos.
Há uma ovação estrondosa em vénia a este jovem, mesmo antes de o julgamento chegar ao fim. E no meio deste entusiamo popular, diz-se que estão arrependidos aqueles que puseram Efigénio Baptista à frente deste processo. Aliás, para além dos que dizem que este juiz tem dentes de tigre, há outros que preferem afirmar que ele é um boi furioso dentro de um supermercado, está a deitar abaixo todas as prateleiras que afinal só estão douradas por fora. Por dentro é ferro velho que pretende estupidificar-nos a todos.
Mas eu estou aqui apenas para bater palmas, como todos aqueles que estão ávidos de justiça. E não vou dizer mais do que aquilo que é dito pelo povo, do qual faço parte. Ou seja, também canto essa música, cujo refrão é “este juiz é lixado!”
É uma língua que se fala eminentemente na costa da província de Inhambane, desde o distrito de Jangamo, até Murrombene. Os historiadores ainda não vieram nos dizer como é que este idioma aparece nesta zona, tornando-se, deste modo, um enigma. Existem pelo menos duas variantes do bitonga (gitonga), ou seja, notam-se pequenas diferenças entre o que se pode ouvir em praticamente todo o distrito de Jangamo e o que nos é oferecido a partir da cidade de Inhambane, até Murrombene, passando por Maxixe.
Há cerca de vinte anos, um historiador brasileiro, disse num simposium que há línguas africanas que se falam no Brasil, e que em África já não se falam mais. Lembro-me sempre dessa afirmação quando vou à Maxixe, onde, em princípio, devia ouvir o bitonga nos mercados e nas praças e nas ruas. É o xithswa (língua do interior da província de Inhambane) que domina a comunicação entre as pessoas. Os preços no Dumba nengue são regateados em xthswa. Isso significa que os bintongas (vatonga), estão a ser profundamente influenciados pelos vathswa.
O mais interessante é que, no lugar de o muthswa chegar à terra dos vatonga e aprender a língua destes, não faz isso! São os vatonga que aprendem a língua dos forasteiros. Em todos os cantos da cidade da Maxixe, fala-se xithswa. Maior parte dos adolescentes que pululam nas ruas vendendo bugigangas, são mathswas (vathwa, em gitonga). Na intensidade do tráfego, com autocarros a passarem sem cessar, porém, sempre tentados a uma paragem inevitável neste que é o entreposto do diabo, pelos rios de dinheiro que movimenta, há inevitavelmente uma chusma de vendedores de bolos de sura, esmagadoramente jovens, que correm atrás desses transportes públicos para vender, e esses jovens são quase todos mathswas.
Mas a cidade de Inhambane, resistente no seu conservadorismo, ainda consegue manter o bitonga, mesmo assim com muitas interferências. Aliás, aqui é a língua portuguesa que sobressai. Os dealers de recargas da telefonia móvel querem mostrar que sabem falar português. As senhoras vendedeiras do mercado também, e todos, ou quase todos os jovens e velhos que são daqui. O bitonga ouve-se pouco nos chapas, quase nada. A bandeira é a língua portuguesa. Até chega-se ao ridículo de muitos cobradores e motoristas e também alguns vendedores (homens e mulheres), fazerem-se passar por matchanganas (língua falada em Gaza e Maputo). Os mathswas desprezam os bitongas, e estes dizem que o muthswa não sabe nada (muthwa khati).
O bitonga “moderno” da cidade de Inhambane, deprecia a sua própria língua. Muitos deles que nasceram aqui, saíram e jamais voltaram, não querem que ninguém os reconheça como bitongas. Você é capaz de cumprimentar o seu amigo em bitonga, em públco, e ele responder-te em português. Considera o seu idioma como sendo de menor valor. Porém, é na Maxixe onde está a síntese de que que o bitonga está em decadência, e isso é normal numa situação em que o próprio mundo em si, já não é o mesmo.
Sou mulher como tu, Yolanda! Sou chopi, com o mesmo sangue que circula nas veias de Xeny wa Gune. Vibro também - em todo o corpo - perante o abalo da makharra, dança dos meus antepassados e de todos os chopi como Xeny, esse rapaz gingão que me arrebata em cada baqueta gotejando luz por sobre a timbila. Sabias disso? Eu sou a mathxathxulani (animadora das orquestras de timbila) vituperada nas noites quentes de m,saho (festival dos chopi). Mesmo assim, minha alma continua a sublevar-se em cada golpe.
Sou mulher como tu, Yolanda! Vagueei descontrolada em muitas etapas da minha vida, sem saber que um dia havia de te conhecer, e que a tua música viria esbater a peste que sou, mas também como é que havia de saber! Caí nas mãos de um homem que usa a rampa do amor como alambique do veneno, tornou-se carrasco de mim e transformou as palavras em guilhotina, mata-me aos pedaços.
Yolanda! A tua música (Ni karate), que cantas contra as feridas despontadas em cada açoite do homem que amas, afinal quem canta essa lírica ensaguentada, sou eu. Vestiste a minha pele e vieste cá fora gritar a dor que me calcina, e não me canso de te agradecer. Passei este tempo suportando o ultraje. Fui esvaziada até ao esgoto, transformada na própria bosta, até hoje em que a tua música chega como as labaredas da libertação.
Agradeço-te sem parar nesta hora da fuga, Yolanda. O caminho que se escarrapacha diante de mim, com ténue aurora no fundo, é a mensagem - não tenho dúvida - de que devo continuar a atravessar esta estepe, e o sábio já dizia: nunca pares de correr quando estiveres a atravessar o inferno, e eu recuso-me a olhar para trás, onde passei a vida a ser achincalhada. A ser vergastada nas feridas vivas.
Yolanda! Eu sei que nenhuma destas palavras é nova para ti, porém reconforta-me saber que me ouves no silêncio, isso dá-me uma imensa sensação de bem estar, é como se eu fosse uma criança acolhida nesse teu peito que bate incansavelmente ao som das claves. E como se tudo isto não bastasse, eis que vens cá fora cantar as minhas dores, vestindo por inteiro a minha pele enxovalhada sem fim.
Obrigada, Yolanda, por essa música (Ni karate), dolorosamente linda!
Na Av. Eduardo Mondlane havia um bar baptizado “Goa”, conhecido em todo o grande Maputo pela essência dos petiscos ali servidos, em particular os mariscos que levavam os irresistíveis temperos asiáticos. Bebia-se cerveja a rodos desde o amanhecer, e todos aqueles que lá iam pela primeira vez, queriam voltar outra vez e nunca mais abandonavam o lugar que se tornou histórico, resistindo aos ventos infaustos do tempo, até ao momento em que tudo aquilo colapsou.
É aqui onde João Paulo, o arrebatante blues man e soul music man, inspirava-se para a loucura dos clubes noturnos reservados aos grandes, e ele reverberava, tornando-se assim, aquele cometa que jamais voltará. Era ele, o João, a principal referência quando o “Goa” entrou em derrocada até se tornar uma espelunca. João Paulo também estava em derrocada, até que a morte, cansada de esperar por um indivíduo que ia devagar em direcção à guilhotina, em cada duplo de Jack Daniels, trespassou-o.
Nos Últimos anos, - meados de 2000 - “Goa”, apesar de se ter tornado um lugar desprezível, era uma importante lagoa, onde mais do que ir refrescar-se com as suas águas turvas, as pessoas que lá se materializavam , muitas delas, faziam-no com o propósito de debater ideias. Havia massa pensante que transformava esta gruta em fonte de sabedoria, não se falava de putas. Quer dizer, em todas as mesas a conversa era desenvolvida em torno do saber, e o que se notava é que quanto mais embriagados, mais lúcidos ficavam os intervenientes.
João Paulo apelidou o “Goa” de “Bar dos Crâneos”, querendo dizer com isso que o “Goa” é bar dos pensantes. O que se falava lá dentro e na esplanada cá fora, não eram balelas. Havia oradores esclarecidos, que se destacavam e eram promovidos, pelo seu conhecimento, a mais do que simples pivots. Outros ainda, aqueles cuja capacidade de oratória e de cultura geral era limitada, ficavam empolgados em escutar os arautos, e pediam mais cerveja. Para eles próprios e para aqueles que falavam.
No “Goa” não havia interlúdio. Em todas as mesas destacava-se um maestro, ou vários, mesmo assim não se perdia a consonância. Era como você estar num estádio com vários palcos, onde em cada um deles a música que se toca, é tocada por grandes músicos, e você quer ouvir todas as músicas ao mesmo tempo. Com a diferença de que chega um momento em que o maestro dilui-se. Cada executante quer tocar a sua música e quer que os outros a escutem. Mas esse é o ressurgimento dos “crâneos”, todos querem brilhar. Aliás, eles vão ali para brilhar. E mostrar que brilham.
Pois é! Lembrei-me destes momentos indeléveis na memória, quando há uma semana estive em Maputo e passei por este lugar onde ainda fui tempo de sentir o cheiro do João Paulo, sem precisar de entrar. Já não se chama “Goa”, mudou de nome e de história, como todos nós. Já não somos os mesmos!
- Armando Artur, em entrevista fictícia *
Armando Artur pode ser um homem taciturno, ele diz que é uma forma de defesa. Não é o tempo que conta na sua vida, mas a importância das coisas que faz. Foi na AEMO onde aprendeu a valorizar a amizade e a partilha. Não guarda ressentimentos, mesmo dos malucos que em algum momento lhe apedrejaram na vida, “eu também sou maluco”.
Acompanhe na íntegra a conversa mantida num final de tarde, na varanda da sua casa, lembrando o sol a esconder-se no esplendor dos Montes Namuli.
-Nasceste em Nauela num ano qualquer. Em 1982 chegas a Maputo com um pequeno bornal no regaço, ninguém te conhecia. O que é que te moveu para um lugar movediço e tão distante da tua terra?
- Você fala do bornal que eu trazia no regaço e faz me lembrar que bornal é uma saca usada pelos soldados, obreiros e itinerantes para transportar provimentos ou mantimentos, mas a minha saca não tinha nada. Se calhar vim para aqui com a necessidade urgente de encher o coração e eu não sabia. Provavelmente aportei neste grande entreposto como um pedaço desconhecido da cordilheira de Namuli, que já tinha as palavras a zumbirem em forma de poesia dentro de mim.
- O que é que te arrebatou em primeiro lugar ao desceres num lugar que não tinha nada a ver contigo?
- Eu era imberbe, deixei-me conquistar pelo fascínio de uma grande metrópole sempre sonhada na pacatez desse lugarejo onde minha mãe me deu à luz, na verdade todo o bulício de Maputo, o frenesim consubstanciado no ruído dos carros, as pessoas a quererem passar todas ao mesmo tempo, os grandes autocarros abarrotas com pessoas penduradas nas portas, tudo isso foi um choque profundo para um rapaz atrevido que apenas confiava na poesia.
- E confiava nos búzios também!
- Depois de retirares a carne desse molusco, a carrapaça do búzio assobia ao sibilar do vento, e na esteira dos médiuns torna-se uma verdadeira bússola, dependendo das mãos que a manipulam, mas os meus búzios são outros, são cada verso da poesia que vou cantando em vários sopros de meditação. Por vezes nas paródias.
- Depois foste parar a esse efervescente alfobre que é a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), onde te mantens até hoje como uma das pedras angulares. O que é que significou para ti entrar nesse clube restrito?
- Se eu sou uma das pedras angulares da AEMO, só pode ser no sentido de que sou um fragmento de uma rocha maior, com o risco de me precipitar e diluir-me no mar. A AEMO é um baluarte sagrado onde aprendi a arrumar as palavras que já trazia da cordilheira de Namuli. A AEMO é um depositário de tesouros, aqui abriu-se-me a luz que me fez perceber o valor da amizade e da partilha. Sinto-me lisonjeado por fazer parte desta orquestra esquisita, em que cada um toca a música dele sozinho, tentando atingir a perfeição e querendo profusamente que os outros escutem essa música.
- Já atingiste essa perfeição?
- Olha, como já te disse, nasci em Nauela na província da Zambézia. É uma zona superabundante que faz parte dos Montes Namuli, abrange Gurúè onde se estende aquela exuberância toda das plantações de chá. Você olha para aquilo tudo e diz, que obra da natureza tão perfeita! Então, a única perfeição que reside em mim, é o lugar onde nasci.
- A propósito, há muita gente que vem das províncias de Moçambique, chega a Maputo e desumbilica-se completamente das suas origens. Como é que tem sido a tua relação com Nauela?
- Desumbilicar-me de Nauela seria abdicar da poesia, e abdicar da poesia é o mesmo que rejeitar a própria vida. Não me canso de repetir isso. Eu sou um dos grãos das poeiras da cordilheira de Namuli, mesmo que levite em escaparates reais e imaginários, de vez em quando tenho que ir para lá, poisar naquele chão para deste modo poder ressurgir e continuar a rugir fora das jaulas.
- Foste secretário-geral da AEMO durante dois mandatos. A tua consciência tranquiliza-te ao pensares no tempo que ficaste lá?
- Tranquiliza-me no sentido de que fiz tudo o que estava ao meu alcance para manter a família unida, e levar a agremiação a níveis de organização satisfatórios, claro com a colaboração de todos os confrades, cada um com a sua afinação. Mas o mais empolgante era eu dormir a pensar que no dia seguinte ia voltar ao bulício onde tudo era imprevisível, ir ao trabalho preparado para ser apedrejado sem mais nem menos por alguns malucos, alguns dos quais ainda sobrevivem, com roupa mais leve, sem a verve do veneno.
- Esses malucos deixaram-te alguns recalques?
- O poeta que me orienta é também um maluco que luta permanentemente pela paz, por isso não tenho como, mesmo que o quisesse, ter ressentimentos. Farto-me de rir quando me lembro desses momentos, com saudade.
- Você anda longe da vida pública, transformaste-te num taciturno, pareces ter medo de alguma coisa!
- Somos todos mutantes, o próprio mundo já não é o mesmo, nem a cordilheira de Namuli, como é que eu, uma pessoa tão pequenina, tão insiginificante perante esses gigantes não vou ter medo! Provavelmente seja um taciturno como tu o dizes, mas essa pode ser uma forma de defesa, pois perante uma vida absolutamente vituperada, a melhor coisa que podes fazer é ficar em silêncio, no silêncio, deixar as palavras avançarem, como se elas fossem a tua jangada e tua muralha ao mesmo tempo. Mas também não é verdade que ande longe da vida pública, depende da lupa que usas para me focares.
- Trinta e cinco anos de carreira é um marco importante para um poeta, há muitas flores espalhadas no percurso, e espinhos que podem ficar encravados para sempre na alma, muitas frustrações, incongruências. Será que depois deste tempo todo você está em condições de embalar a troucha e dizer, deixem-me voltar a Nauela beber conhaque?
- (Risos). Não há conhaque em Nauela (Risos), mas tem muita cachaça que bebo sempre quando vou para lá. Bebo para renovar e fortificar a minha relação com os espíritos lómwè que me guiam. Quanto aos trinta e cinco anos, não é isso que me vai marcar, não é o tempo que me marca, é a forma como tenho vivido a vida até aqui, lançando palavras ao léu, muitas delas grafadas em livro como um monumento erigido em memória de mim. Isso é que conta, não o tempo que levei a juntar as pedras. De resto o que importa é não sermos vencidos.
- Mesmo assim como é que te sentes perante esta efeméride que é uma comemoração da tua vida?
- A emoção é maior ao ver o envolvimento dos meus confrades na minha homenagem, significa que eles dão-me valor, significa que sou importante para eles, mesmo sem o merecer, e eu não posso querer mais nada para além desse conforto espiritual. Eles não o fazem porque brilho, mas será com certeza por amor, ao qual agradeço sem parar. Choro quando penso nisso tudo.
* Entrevista publicada na antologia em homenagem aos 35 anos do poeta
Mónica Fungayi, mulher com quem tenho muitas afinidades, ligou-me às seis da manhã e disse, estou a passar Xai-Xai, e eu exclamei, a passar Xai-Xai?! Ela disse, sim, estou a passar Xai-Xai, meu caro!
Vinha de Maputo e eu estou em Inhambane. Fiquei uns instantes a pensar na maneira como ela conduz, segura, entretanto perigosa. Viajar ao seu lado é aceitar o suicídio, contudo a conversa e o whisky diluem todo o medo, apesar de já não termos idade para suportar a pressão, como nos tempos de juventude, quando viviamos a vida em cascata.
Foi ela quem retornou e disse, vou à Tete, queres ir comigo?
Mas eu nunca me surpreendi com as maluquices da Mónica Fungayi, ela podia estar a falar a sério ou a brincar, dela espero tudo, é uma pessoa inesperada, está pronta a todo o momento a responder ao chamamento da liberdade, e o que mais admiro nela, é o desejo permanente de ver os outros, livres, como Bob Marley quando dizia, “deixo as pessoas que amo, livres, se voltarem é porque as conquistei, se não voltarem, é porque nunca as tive”.
Eu volto sempre para Mónica Fungayi porque conquistou-me, não resisto ao seu fogo feito de palavras sempre novas. Então, se for verdade que está a passar Xai-Xai a caminho de Tete, vou com ela, essa proposta é irrecusável. Irresistível, por todas as diabruras que se anteveem.
Chove uma chuva intermitente aqui onde estou, e por causa disso não fui fazer a minha caminhada habitual. Se não caminho, desce sobre mim o tédio, o dia fica longo, sufocante, desgastante, e esta chamada da Mónica Fungayi vem mudar meu azimute, dá-me as luzes que preciso para enfrentar o dia.
- Daqui a uma hora e meia estou aí, meu brada, surge et ambula!
Nunca tenho as malas feitas, sou um barco fundeado. O que me safa é que as minhas amarras e a âncora, estão sempre prontas a moverem-se na dança de uma nova canção temporária, não sou prisioneiro, nem de mim. Viajar com Mónica Fungayi será uma dança vertiginosa, e quem vai cantar essa canção somos nós os dois. Falaremos, na nossa paródia cíclica, do Fela Kuti, do Hugh Masekela, dos Beatles, do Ray Phiri, da Elis Regina, da Abete Masikini, do Marlon Brandon, do Francis Coppola, nossos ídolos de sempre.
Iremos contemplar a cordilheira de Catandica, na província de Manica. Do outro lado daqueles montes fica o Zimbabwe. Então chegará até às nossas memórias o odor de Thomas Mafume e Oliver Mtukuzi e Chiwoniso Maraire, nossos ídolos imortais. É tudo isso que me faz saltar da cama nesta manhã de chuviscos descontinuados. É a Mónica Fungayi que desenha, na minha solidão, a aurora para dissipar pensamentos pensamentos nefastos, é ela que repete sempre, sem se cansar, essa lírica: quem te disse que estás sozinho!
Daqui a pouco ela vai chegar, vinda de Maputo onde vive uma vida anarquista, vem levar-me para uma viagem de 1500 km, um empreendimento que pode ser a saga dos loucos, sem previsão de chegada, pois o tempo fica por conta da nossa liberdade. Do gozo em si.
Enquanto Mónica Fungayi não chega, vou entregando-me à imaginação. Às lembraças de locais de Tete como Kwatchena Ku Nhartanda, Canongola, Matundo, Nhamabira, Chimadzi, locais que bem conheço na minha vida de ex-andarilho. Não nos faltará ainda a oportunidade – quando chegarmos - de procurar um lugar onde se vende pombe (cerveja dos aantepassados da Mónica). E aí atingiremos o auge de tudo.