Quando a amiga Zena Bacar do Eyuphuro, vitimada pelas armadilhas da vida, seguiu para o infinito das estrelas, para cantar nos palcos da consagração, quis dedicar algumas palavras de afecto que exaltassem o seu carisma. A sensualidade e beleza inigualável das jovens mulheres Emakuwa. Retomar ao colorido da capulana, a vaidade dos corpos franzinos, enfim, queria ter feito jus à profunda, melancólica, e quase sempre, soberba, voz da Zena que roubou do Tufo. Exuberante e, poucas vezes, lacónica, Zena Bacar, era vaidosa e esbanjava sorrisos que espalhavam a magia e o poder do feitiço dos seus gestos sensuais. Ela, na sua majestosa variação de tons musicais, viveu para atrapalhar os espíritos e equivocar corações.
Os jovens, agora de cabelo grisalho, da minha geração ficarão, eternamente, associados a sua a Muara ya N´rake (esposa do Senhor N´Rake). O icónico hino que atravessou tempos e espaços, do norte de Moçambique, dessa voluntariosa etnia Emakuwa, espalhada por África e pelo mundo. Nunca me perdoei por não ter feito esse elogio. Chorei no silêncio da dor a sua partida. Zena Bacar, nem deve repousar. Continua activa e cantarola para os anjos. Completaria neste Agosto, 74 anos. Procuro, ainda, explicações para esta manifesta omissão. Apenas, as emoções poderiam ter paralisado meus dedos e silenciado minha consciência. Testemunhar o nosso tempo e revisitar a trajectória de uma voz que viveu para lá do seu tempo, e que permanece, incomparável, como uma das mais conhecidas interpretes vozes femininas do cancioneiro moçambicano.
Neste exercício de remissão e indulto reencontro esta janela entreaberta, para cruzar Zena Bacar e os iconoclastas Ghorwane. Eles, os bons rapazes de Samora Machel, agora, igualmente, celebrando os 90 anos do seu nascimento, coincidem com a celebração dos 40 anos. As bodas de esmeralda duma monumental carreira, do inimaginável impacto social, e do da irrepreensível matriz que souberam gerar e preservar. Os Ghorwane são uma decorrência de um tempo revolucionário conturbado, de um período de afirmação e aporias, mas, e sobretudo, dessa inolvidável geração do 8 de Março que assegurou um país sonhado socialista e moldado capitalista.
Ghorwane e Zena Bacar ou Eyuphuro do Gimo Abdulremane foram os pioneiros moçambicanos da bem conhecida World Music. Para além deles só o conjunto RM ou Marrabenta Star e a CNCD alcançaram patamares igualmente visíveis no estrangeiro.
Teríamos de revisitar o músico britânico Peter Gabriel, afortunado compositor, progressista e activista de diferentes causas sociais, para entender este percurso. Peter Gabriel foi, originalmente, vocalista do Genesis. Em 1975 inicia uma carreia a solo, abandonando os Genesis. Vira activista em diferentes áreas sociais, incluindo políticas. Combate o apartheid sem tréguas. Abre um espaço privilegiado para promover ritmos e sons de outros países em desenvolvimento. Cria vários álbuns que são designados pela crítica como Eponymous. O último ficou conhecido como Jogos sem fronteiras. Pegou na luta de Steve Biko, líder do ANC e deu voz à luta contra o regime racista. Impacta o mundo com uma postura que mostra maturidade e consciência política.
Nesse apoio declarado a Steve Biko, conta com a colaboração de Youssour N´Dour. Ambos lançam a última tentação de Cristo. Os artistas convidados são africanos. Peter Gabriel sempre advogou o princípio de aglutinar artistas da Ásia e América Latina. Vence o Grammy e outras distinções em 1992 e 1993 e se afirma, em definitivo, como o maior promotor musical cuja tecnologia já superava a música da época. Terá sido nos CDs XPLORA e OVO que colocou os nossos compatriotas Zena Bacar e Ghorwane. Esta caminhada pela divulgação dos artistas africanos ainda o levou a vencer um prémio especial da Amnistia Internacional e outras distinções honrosas.
Convenhamos que a Real Music foi, então, responsável pela gravação de uma incontável e selecta nata de artistas africanos, incluindo o congolês Tabu Ley Rochereau, da famosa Kwassa Kwassa e esposo da Mbilia Bel, que tanto agitou as nossas ancas, e ainda o tanzaniano Remmy Ongala, Salim Keita do Mali, Touré Kunda, Papa Wemba. Um naipe inesgotável.
A World Music foi uma forma erudita e genuína de promover as interpretações dos africanos. Convenhamos, uma forma de escapulir das ortodoxas regras do mercado musical mundial. Todavia, não isento da armadilha de penetração num mercado que obrigava a esconder a linha da originalidade e identidade. Apesar de tudo, Peter Gabriel tem o mérito e crédito de ter aberto essa frente de divulgação.
Os Ghorwane sucederam a Zena Bacar e Gimo Abdulremane. Majurugenta foi o cartão-de-visita. Voltaremos lá. Estas bodas de esmeralda do Ghorwane acontecem quando eles voltam a incendiar palcos e plateias, aquecem esses Verões europeus, já de si com as temperaturas desconfortavelmente quentes. Não admira, pois, que este libelo contra o meu próprio esquecimento, auxilie a reavivar algumas facetas. Ninguém tem o direito de se alhear destes bons rapazes, parte património musical mundial.
Quando em 1978 foi tomada pelo Governo a decisão de colocar jovens, de todo o país, para se formarem e preencherem as vagas deixadas pela debandada colonial, não poderíamos os imaginar que a história musical, deste país, estaria sendo escrita com as letras douradas. O projecto de unidade nacional dinamizou a música. De norte a sul de Moçambique houve uma verdadeira explosão musical. Grupos e cantores como o eterno Alexandre Langa, Fanny Pfumu, Chico da Conceição, João Domingos e Orquestra Dambu, eram expressão exponencial. Pedro Ben e Wazimbo vinham do Chibuto para ferver as plateias musicais. Pelo centro e norte, à esquerda e à direita, a música parecia andar na contramão da revolução. Era progressista e evolucionista.
Misturavam-se ritmos e cores. Era preciso cantar como dizia o poeta Kalungano o herói nacional Marcelino dos Santos. A minha geração ainda teve o ensejo de desfrutar de exímias bandas musicais. Com saudades me recordo da banda Primeiro de Maio (1º de Maio de Armindo Salato), de Quelimane, que tanto furor fez com “Verdes campos”. A letra continua tão actual como vital para os dias que correm. Zambézia, aliás, foi terra de Lalarita e tantos outros. Nampula tinha Chico da Conceição e João Júlio Patinho no topo das preferências. Cantaram contra o que era imposto sistema com linguagem camuflada. Aliás, Lázaro Vinho, de Tete, seguiu suas pegadas.
Foram, ainda, destaques as vozes inimitáveis de David Mazembe, Madala e Romualdo na região centro. O Eyuphuro de Gimo Abdulremane e Jaimito Matapa na cidade de Nampula. O sul tinha outros pergaminhos. Desde o Alambique, de Hortêncio, Arão Litsure e João Cabaço, passando pelo Hokolokwe, os Galtons, José Mucavel, Guegue, Mingas, Willy e Aníbal, Fernando Luís, Bill Cuca, Chico António, esse vencedor do prémio radio Franca Internacional, José Guimarães, Elsa Mangue, Filipe Nhassavele e tantos outros que gravaram na Rádio Moçambique. A Rádio Moçambique, diga-se de passagem, foi a catedral da produção e divulgação deste vasto património musical.
A RM foi o respaldo de tudo que aconteceu. Mas, a música não desperdiçou outras oportunidades. Os estúdios da EME, de Eduardo Mondlane Júnior, irmão de Chude Mondlane, também ela, com voz dourada, emprestaram à música deste país uma tonalidade cativante. Deveria ser obrigatório que cidadãos como Eduardo Mondlane Júnior regressassem à música. Ajudar a recriar o talento juvenil. Stuwart Sukuma fala do concurso da EME para descoberta de talentos com saudade. A sua fornalha iniciou nesta época. Também foi a base do Ghorwane. Mas, existe, igualmente, mérito que deve ser estendido ao empresário e revolucionário Aurélio Le Bon.
Privei com o Pedro Langa. Uma relação me empurrou para a simpatia pelos Ghorwane. Pedro chegava do Chibuto, esse espaço musical incontornável. Filho de enfermeiros e de uma família musicada pelos irmãos mais velhos. Hortêncio Langa e Milagre Langa. Conceituados. Em cima dos seus sapatos de tacão alto, calaças boca-de-sino, cabelo a Jimmy Hendrix, chegava, por equívoco para fazer professorado. Eu chegava pela mesma imposição. Também, de uma família de enfermeiros, mas, sem músicos para embalar as noites de luar. Pedro tentou incutir a ideia de sermos todos músicos. Queria que todos os seus amigos tocassem violão.
A vida nos empurrou, depois, para desconfortantes situações. Rebuscávamos o sentido de missão. As tarefas revolucionárias eram irrecusáveis. Pedro não se ajustou e não escondeu ser avesso. Uma boa parte do nosso grupo aceitou, com reservas, e mesmo sem vocação ou motivação, seguiu a única carreira disponível.
Pedro não se alheou dos seus sonhos. Não questionou, nunca, abandonar seu violão. Qualquer sintoma de música incendiava seu espírito musical. Cantava melodias conceituadas. Criava músicas em tudo que tocava. Cantámos algumas músicas que nunca foram gravadas. Essa foi a força dos sonhos que nenhum tempo conseguiu afastar. Queria viver de uma forma diferente. O sonho da vocação que se opunha ao da revolução. O que o tipificou e fez dele melhor que todos nós foi mesmo a coragem. Enfrentou tudo e todos. Um sistema. Muitos dos colegas desertaram das fileiras e abandonaram o país. Os prosélitos não perdoaram. Outros sofreram sevícias.
As revoluções se fazem de diferentes formas. O nosso grupo aprendeu a fazer amizade com os compositores revolucionários. Calisto Mijico e Lindolondolo. Escreveram os hinos da revolução Moçambicana. Aprenderam a compor na Coreia do Norte. Era a bandeira musical de tantos temas cantados na época. Aprendemos deles os ritmos ensaiados nos campos de Tunduru e Bagamoyo. Nachingwea. As canções que Eduardo Mondlane escutou, deixaram se encantar, e cantou, tantas vezes, no clamor da sua revolução.
Toda a disciplina criou alguma saturação. Cansava a exigente disciplina e rigorosidade dos tempos iniciais. Isto fez com que se criassem focos de revolta. Próximo do corredor dos nossos quartos foram escritas nas paredes frases inimagináveis. Os serviços castrenses não toleraram. Condicionaram a expulsão de todos. Sem apelo e nem agravo. Perdíamos colegas e amigos cuja empatia não esmoreceu. Para muitos de nós, pela primeiríssima vez, depois da independência, dialogávamos com um caminho da contra-revolução. Outros valores e exigências. Aprendemos que o pensar diferente era proibido. Não seguir a linha da ordem era proibido. Perigoso. Não se atentava contra a revolução. Não tardou, o centro do país, voltou a escutar o ruído das balas e a ausência de paz. Não deu, sequer, para nos reconciliarmos como irmãos. Nem como irmãs. As notícias eram de ataques e destruição. A intransigência do não encontrou antídoto que tivesse evitado a catástrofe.
Antes da sua expulsão Pedro Langa, José Chambe e outros, ainda subiram por alguns palcos. Levava sons originais experimentados entre os colegas de curso. Sentíamo-nos representados. Eram, igualmente, os nossos sons. Apoiámos e preenchemos muitos dos lugares da plateia. Queríamos, também, saber como se comportaria o grande público. Muitos aplausos, mas, também, desconfianças e alguma desaprovação.
Nelson Saúte escreve no seu Planisfério moçambicano que a primeira apresentação pública de Pedro Langa, em 1979, no teatro Scala, na companhia de Hokolokwe foi sofrida. Nas duas canções originais que apresentou, nem por isso foi bem-sucedido. A plateia não queria, apenas, ritmos originais. Preferiam as músicas do estrangeiro. Sons mais quentes e que faziam as noites de festa. A despeito da adversidade, como refere Saúte, os verdadeiros criadores não são entendidos pelos seus contemporâneos. Mas, eles estão muito a frente do seu próprio tempo. Parece que vivem em galáxias diferentes e funcionam como satélites fora do comum.
Anos mais tarde, soube que o Pedro Langa se juntara ao conjunto Mbila. Um grupo que tocava no edifício do clube da juventude, alegrava as mentes que procuravam entender a revolução sem desperdiçar a sua juventude. Nós deambulávamos um pouco por todo o país. As escolas caiam em nossas mãos. Pedro Langa não chegou a entrar para nenhuma escola, porém, com agrado sabia do paradeiro de todos. Vibrava com o empenho de todos. Nós retribuímos com cartas que ele nunca respondeu em detalhe.
Igualmente, soubemos que ele se aliara ao compositor e cantor Simão Mazuze. Simão, um músico de outras referências e valências, havia feito o serviço militar em Portugal, na força aérea, e já por lá, além-fronteiras, provara aos cidadãos portugueses a magia do seu talento. Simão Mazuze era irredutível, com toques de rebeldia no que fazia, cantava e dizia. Era igual a si próprio. Até de nome mudou e virou Salimo Mohammed.
O regime nunca o compreendeu. Foi enviado para Bilibiza, Cabo de Delgado. Longe de o silenciarem, ele regressou mais forte e mais convicto. Já não era apenas Mamana Maria, sua canção mais conhecida e forte, mas, a sua famosa Bilibiza. Pedro e Simão Mazuze formam o Xigutsa Vuma. Um grupo e músicas de contestação, rebeldes e avessas ao que de pior o projecto de revolução oferecia ao país.
O Xigutsa Vuma, com Pedro Langa e Salimo Mohammed, ainda, foi a tempo de conquistar o prémio de melhor composição nesses dificílimos anos 80. Eram os tempos da tenebrosa Operação Produção, que todos tentamos esquecer e perdoar, como moçambicanos, e os reflexos de uma política que correu com pouca feição e originou outros problemas transversais. Associado à fome que começava a grassar um pouco pelo país, as arbitrariedades das guias de marcha e a guerra de desestabilização, existiam razões de sobra para escrever e cantar temas que marcariam os seguidores. Já conhecidos como controverso na abordagem das suas letras, o grupo tinha de tudo para singrar. Porém, terminou cedo e dois galos no mesmo poleiro não poderiam conviver por muito tempo.
Por volta de 1984, e fazendo eco nas memórias de Stuwart Sukuma e do Roberto Chitsondzo, esse Professor músico, melhor, músico professor de Educação Física, os concursos musicais de novos talentos lançados pela EME de Eduardo Mondlane Júnior, auxiliaram que os novos talentos surgissem pela praça. Roberto Chitsondzo aproveitou a estadia em Inhambane para escrever alguns versos. Voltou a Maputo com o intuito de os gravar. Não voltou à prática desportiva. Perdíamos um professor com pouca habilidade desportiva, para alguém que virou um exímio tocador. Usava a destreza dos seus dedos para recriar sonhos e verdades escondidas. Da sua voz seriam extraídos ritmos assombrados. Palmilhou a cidade e se experimentou com vários Músicos. A melhor paragem foram os ouvidos de Pedro Langa. O passado da educação serviu de base para os unir. Os Ghorwhane que estavam em banho-maria ganharam força. 1983 marcava, então, as pernas e o arcabouço para seguir pelo mundo dos sons que encantam e exaltam os céus. A música moçambicana agradeceu. O mundo também.
Um selectivo conjunto de músicos esteve associado ao Gorowhane, com realce para o saxofonista, vocalista Zeca Alage. Se o Pedro Langa era a alma, Zeca Alage era o espírito e a força que comandava o barco. Se juntavam, também o baixista Lot, o baterista Hilário, e ainda a o guitarrista Tchika. Para os sopros Júlio Baza assumia as responsabilidades e garantia que os ritmos tinham um factor diferenciador. Ao grupo inicial juntaram-se David Macuácua, e o percussionista Dingo.
As letras e os conteúdos iniciais, que estiveram a cargo de Pedro Langa e Zeca Alage, eram de arromba. Para aqueles tempos eram mesmo de muita virulência. Cantavam o que o povo e seus seguidores mais queriam escutar, a crítica social, o desacerto político, a guerra que dilacerava o país e o mercado negro que crescia a olhos vistos. Pedro Langa e de alguma forma Zeca Alage conheciam muitos dos dissabores dessa oposição às políticas económicas e sociais do regime. Cantavam o que a alma lhes recomendava e faziam o delírio das plateias. O público apoiou e virou um aliado natural.
Roberto Chitsondzo toma uma decisão e junta-se ao grupo a 23 de Junho de 1984. Fazem o primeiro espectáculo no cinema África, hoje tão descuidado e tão votado ao esquecimento. Hoje, os Ghorwhane persistem e o cinema definha. Uma pena ter uma catedral musical tão voltada ao abandono.
Retorno ao Nelson Saúte que tão bem os soube tipificar e glorificar num texto de homenagem escrito há cinco anos. Ghorwane, segundo ele, soube transformar o sofrimento e a dor em alegria. E vai mais longe, não se limitavam a lamentar, como acontece com tantos nos tempos actuais, e como muito se ouve do cancioneiro moçambicano, mas pautavam pela inovação e pela busca de ritmos tradicionais para os incorporar nas suas músicas e dar essa roupagem que fazia da sua música prístina, delicada e uma agradável suavidade para os ouvidos dos seguidores. Mas, o mais importante, no meio de tanta agitação e ausência de consensos, era aproveitar o quadro da realidade social e fazer disso a moldura da tela para eternizar a natureza e a beleza infindável das suas canções.
Era a profissão e a profecia de fé e de amor, a um país e um povo, que eles tinham a missão de apoiar, entreter, educar e informar. Os países com tantos problemas sociais precisam de um escape. Eram essas temáticas que invadiam a cabeça de qualquer compositor. Temática insubstituível. E se desde o período da independência a promessa da revolução era liberdade, paz e progresso, isso era, precisamente, aquilo que todos queriam cantar e escutar.
A crítica, nunca é bem recebida por quem tem responsabilidades de governação. Na época, ainda, com os campos de reeducação vigentes, os serviçais do regime se assustaram com o desalento da classe. A crítica vinha de todos os lados. A guerra chegava às bermas das grandes cidades. Não tardou que para todos os espectáculos públicos, fossem enviados grupos à paisana de sequazes e seguranças, com o intuito, único, de captar os conteúdos, a apreciação do público e as mensagens. Uma espécie de avaliação do sucesso e uma medição do que tentava ser atirado para baixo do tapete que permanecia tão evidente como destapado. Foram tempos desafiadores.
Cantar parecia ser a única forma de espantar os males. Moçambique, tão jovem, se submetia aos pés da sua própria juventude e se assustava com uma faixa etária que sonhava, aspirava e queria outros rumos. Na realidade, queriam paz, desenvolvimento e liberdade. As promessas de um processo que não dependeria, apenas de si e da sua conjuntura, para prover estes meios todos as pessoas. Até o Presidente Samora Machel se assustou com a profundidade das músicas e versos do Ghorwhane. Presumimos, todos, que foram as informações deturparas que foi recebendo e consumindo. O tempo ajudou. Escutou com a atenção do seu coração e sensibilidade. Depois, gerou a empatia, como a graciosidade que brincava com a sua própria alma. Virou adepto incondicional. Não tardou para que fossem convidados para os banquetes de Estado. Recebia as suas visitas no Palácio e fazia do empenhando e rejuvenescido Ghorwhane um aliado musical e um símbolo da própria moçambicanidade.
O Presidente Samora Machel tatuou o grupo com a mecânica que a própria música criou. Ofereceu instrumentos de percussão à banda. Fê-lo com um sentido de Estado e de amizade pessoal. Queria continuar como um líder que se assumia como Mestre. Nessa condição, entendeu que as obras sagradas dos seus jovens músicos, representavam os valores de um povo que ele deveria liderar e saber escutar. Queria que os Ghorwhane fossem a banda de referência e a realização da perfeição musical. Aliás, soube, nos últimos tempos, que o Presidente Machel ofereceu, igualmente, equipamento musical à Banda dos Massucos, lá do longínquo Niassa. Os Massucos nunca desapontaram. Transportam toda a mestria e a simbiose dos sons Yao, o ritmo cadenciado dos Nyanja, ambos adornados pela glória do Chioda e Nganda, as mais célebres danças do norte. O Mestre Santos líder dos Massucos ainda mantem esse violão presenteado e não se desfaz dele, em nenhum momento. Virou talismã.
A nossa alma é composta por harmonia, e a harmonia só pode ser gerada nos momentos em que as proporções do bem e do mal são desequilibradas pela própria vida e seus sons. Os Ghorwane livraram-se da cerrada perseguição, sem que para o efeito tivessem de mudar a sua forma de cantar e vibrar. A música não deve ter outro nome que não seja a irmã da pintura. Assim, pelos ritmos e conteúdos dessa injustificada perseguição, passaram a ser apelidados de Bons Rapazes. Um nome improvável, mas apropriado que quase assenta no original. Lagoa que nunca seca. A criatividade deu corpo à liberdade e algo bem mais supremo. Liberdade de criar. Com esta liberdade se criam as oportunidades para que as próprias liberdades individuais se corporizem e a sociedade se liberte de amarras. Os direitos humanos entravam pela porta mais democrática da vida. O sentido que a humanidade sempre prezou. A dignidade quer satisfaz o sentido mais digno.
Dois anos depois da criação da banda Pedro Langa abandona os Ghorwane. Recordei aqui o temperamento do Pedro, mente brilhante, todavia, muito preso às suas convicções. Uma teimosia que quase era casmurrice. Não admira, por conseguinte, que se tenham desentendido por alguma abordagem, ou pelo rumo, menos consentido, que a banda deveria seguir. Roberto Chitsondzo e Zeca Alage se firmam como líderes substitutos. Ao grupo se junta David Macuacua. As canções continuaram impressivamente pungentes. Jamais deixaram de interpretar essa dor dos moçambicanos. Massotcha de Zeca Alage, o tema que dizia que a guerra não era solução e tinha custos demasiado elevados. Os investimentos, se ainda existissem, deveriam ser encaminhados para aquisição de comida para a população. As armas que eram caras, bem mais caras que sacos de arroz, não serviam. Ghorwhane colocava mantinha a força do paradigma do quotidiano. Os recados eram para todos os envolvidos no conflito que fez milhares de mortes e milhões de deslocados.
O primeiro disco dos Ghorwhane foi quase que uma encomenda da Real Music. 1991. Majurugenta foi o nome do álbum de estreia. Com tantas outras canções, de inegável beleza e sempre com um substrato de mutimba, gravam este álbum na perspectiva de incluírem as músicas na World Music. Peter Gabriel está por detrás e tem a garantia que seria um sucesso. Pela segunda vez, Moçambique chegava ao topo da música internacional. Agora, eram dois os nomes mais sonantes. Eyuphuro e Ghorwane. O disco foi lançado em 1993.
Nem Pedro Langa e muito menos Zeca Alage estiveram presentes, em 1993, e levou algum tempo até que o disco tivesse sido finalizado, para testemunhar o sabor do seu sucesso, daquele que foi um muito celebrado e apetecido lançamento. Zeca Alage foi barbaramente assassinado. Inexplicavelmente retirada a vida de quem só tinha vida para dar e revelar. Com a sua partida desaparecia, na mesma proporção, toda a cor, beleza e magia dos sopros do seu indomável saxofone. Esse genial sopro metálico e que tanto ritmou dezenas de canções, surpreendeu os ouvidos mais exigentes e penetrou fundo no coração dos seguidores. Um sentimento de comoção tomou conta do país. A estação de televisão pública iniciou o serviço noticioso, com o anúncio da sua partida. O triângulo que fez as fundações destes clássicos sofria um revés. Um furacão que parecia destinado a assombrar o que está escrito nas nuvens como parte dos sons deste Moçambique.
Ao longo dos anos Ghorwane continuou vindo a público local e internacional com regularidade. Como qualquer banda no mundo, passam por períodos mais ou menos complexos e difíceis. A corajosa crítica social manteve-se presente. As vicissitudes sugeriram mudanças. Entradas e saídas. Ainda assim, se reinventam. Pedro Langa partiu em 2001, igualmente, de forma misteriosa, ainda no calor de uma juventude que teria tudo para oferecer à música ligeira Moçambicana. Mesmo não estando com o grupo, esta partida impacta. As honras lhe foram prestadas em diferentes momentos. Depois, saiu do grupo David Macuacua, numa viagem para as Europas.
Roberto tem uma memória de elefante. Marcou a saída de Costa Neto do grupo. Uma digressão por Portugal e, simplesmente, não regressou ao país. Nada que estivesse nos planos, mas a conjuntura forcou e extremou estas posições. Carlitos Gove, Paíto e Jojó Moisés, também, em momentos separados. Marcou a saída de Jorge César. Mas as saídas, por vezes, acompanham-se de reentradas. Também chegou sangue novo importante. Como o próprio Roberto coloca, do que ele mais gosta é chegar sem planos e fazer parte de um plano que estava traçado. Esses são os dois lados da mesma viagem. Tiveram músicos que chegaram para ficar e outros que partiram para nunca mais voltar.
As recordações não são cronológicas, muito menos por ordem de categorias e importância. Fez parte da banda a Tsala Tina Cândido. Eventualmente, a primeira mulher que emprestou a voz e trouxe uma forma diferente de estar. Nos anos 90, se juntaram ao Ghorwhane a Felicidade Tomas (Fofinha) e a Luciana Chissano (Cindinha). Faziam coros e coreografias. Betinha seguiu para o infinito. Mas, foi importante na performance. O bailado dela encantou Londres. Soberbas e memoráveis actuações. Também o pujante e agora na carreira a solo Moreira Chonguiça entrou para a banda. Um etnomusicólogo que vestiu as músicas de uma nova roupagem e um sentido de modernidade. Teve de sair, mais tarde, para continuar os seus estudos na cidade sul-africana de Cape Town.
Esse movimento de equilíbrios e reequilíbrios continua perene e perpétuo. Por vezes, mais oportuno, e por noutros momentos, com menos sabor e profundidade apresentados no conteúdo, todavia, marcadamente, na coloração dos efeitos especiais que as composições foram ganhando. Ao grupo se juntou Karen Boswell, uma artista que havia estudado música na infância e juventude e com o seu saxofone recriou uma sonoridade pouco habitual. A banda guarda memórias inesquecíveis desta passagem.
Agradável surpresa foi a Sheila que integrou a banda e tocou flauta. Essa tonalidade que desperta todas as almas. Emigrou mais tarde para Europa e por lá continuou os seus estudos. Joni Schwalbach chega em 1993. Eram os primeiros 10 anos da banda. Trazia um som refinado pela tecnologia. Continua como coração da banda, com uma forma mais pausada de ser, a serenidade que sabe respeitar o caminho, mas que não se coíbe de impor um pouco da sua marca e do seu estilo. Assim o grupo se reergue. Faz da dor das partidas a forca da sua resiliência e do querer perpetuar um som que agrada diferentes gerações e prazeres.
40 anos de esmeralda e muito ouro à mistura. Gorowhane e os seus versáteis músicos e compositores podem não ser os mesmos, não manter a originalidade dos ritmos. Porém, continuam a não aceitar a resignação e a criticar de forma obstinada no exercício da cidadania. 40 anos, de uma música que revela a forma de viver e de estar dos moçambicanos. Uma prova contra a intolerância e a estupefacção. A manifestação mais viva de um povo que se libertou e que escolheu os seus caminhos. 40 anos e três álbuns que ficarão em nossos corações. Majurugenta, Kudumba e Vana Va Ndota. São álbuns inesquecíveis e sublimes. Decénios para recriar o DNA, manter a fidelidade à poesia, ao ritmo e ao balanço. Essa caminhada aborda as assimetrias sociais, as contradições do quotidiano, e a manutenção a fidelidade aos sons do nosso tempo. Dignidade e honra, num som espantosamente agradável e delirante.
As culpas devem ser imputadas ao Gondwana. Essa épica separação dos continentes. Roubou de todos nós a idílica Madagáscar. Esse supercontinente que existiu ao sul da linha do Equador, por volta de 200 milhões de anos atrás, nunca deveria ter permitido tamanha aberração.
Perdemos a terra. Jamais a identidade. Muito menos a coragem e a postura. Esperança por outros horizontes se mantém intacta. Estes dois extensos países, terras que se perdem de vista, mantém o M inicial de grandeza e soberania. Abraçam-se na alegria e na tristeza. Pacto aprimorado e abençoado pela natureza.
Estamos, neste acordo de cavalheiros, condenados a contemplação de fronteiras desmarcadas. Não nos abraçamos nunca. Ilustres e desconhecidos vizinhos. Madagáscar configurou-se como escudo protector natural dos ventos fortes. Nenhum ciclone alcança o nosso litoral, sem que, antes, refine a sua potência e espírito maligno na muralha gigante. Deveríamos indemnizá-lo com uma taxa anticiclónica. Prevenção de serviços meteorológicos catastróficos.
Madagáscar não é, apenas, a terceira maior ilha do mundo. A exuberante natureza impressiona até ao Criador. Incomparável endemismo. Mistérios ancestrais de espíritos naufragados. Castelos imperiais que ardem no mesmo dia, em colinas diferentes. Aqui rodam os filmes que fazem sucesso nas bilheteiras americanas. Grande escapada. Madagáscar 1-2. O mundo se rende às relíquias e evidências. Uma eterna e impressionante longa metragem.
Madagáscar privou-se desses mamíferos de grande porte, como elefantes, zebras, girafas, leões, hienas, rinocerontes, antílopes ou búfalos, deliberadamente esquecidos em Moçambique. Em compensação, ganhou outros e exclusivos. Roedores, lémures, espécie de esquilos gigantes com listas circulares na cauda, morcegos e aves de todos os tamanhos e cores. E, esta ilha que já foi nossa, é o habitat de espécies únicas, de tartarugas gigantes, e de colinas que os colocam próximos de Deus.
Qualquer ser humano adoraria conhecer esta ilha. Testemunhar o animismo, o secretismo, o convívio e a tolerância dos budistas, a comunhão católica e a emergência islâmica. Os palácios monumentais, as plantações de baunilha, as barragens, o crioulo linguístico, e a mestiçagem que já refaz uma nova e híbrida raça humana.
Essa seria a oportunidade para reencontrar a tribo Mikea, antigos macuas, que atravessaram Niassa e Nampula, para emprestar o seu DNA a dezenas de povos nos diferentes continentes. Aqui aprenderíamos a conviver com as cerimónias de circuncisão, tão comuns e tão populares. Mergulharíamos nestes lagos artificiais, nas ruas apertadas. Conhecer Madagáscar, para que as crianças nos ensinem que estas são as ilhas descobertas por Diogo Dias, irmão de Bartolomeu Dias, ambos célebres navegadores da Tuga. Todas as homenagens lhe são feitas nos manuais escolares. Sem erros e nem omissões.
Reza a história que a sua caravela ancorou, por estas paragens, a 10 de Agosto de 1500. Como todos os descobridores, incluindo Cristóvão Colombo, Vasco da Gama e Fernão Magalhães, equivocados no caminho marítimo para a Índia e o oriente. Vítimas das monções do Índico que só os Gujarati dominam.
A cobiça francesa, no século XIX, fez das ilhas do Índico, a nova fronteira francesa em África. Madagáscar converteu-se, diante das cumplicidades e de acordos secretos, numa colónia francesa, como tantas ilhas vizinhas. Uma história de cumplicidades, colonização, culturas e neoliberalismo. A soberania e liberdade se impuseram.
A língua malagasy próspera. As restantes definham. São oposição. Por aqui coabitam 20 grupos étnicos, de onde se destacam os Merina, descendentes dos indonésios; os Sakalava, oriundos de África; e os Antaimoro, originários da península Arábica.
Madagáscar luta pelo bem-estar das suas gentes. Os modelos do progresso descarrilam. O desenvolvimento tarda. A felicidade tarda e não desabrocha. As crianças vivem perplexas. Os jovens anseiam por oportunidades, no escasso emprego. O fatalismo a que, nós próprios, nos votamos no continente. Bandeiras brancas e pretas de liberdades e dependências flutuando, sem ventos, nos mastros da incredulidade.
O futuro nos reserva um outro Gondwana. Moçambique vai dividir uma vez mais! Está escrito nas estrelas. Já vivemos divididos entre cores e vontades. A nova Madagáscar ficará com o parque da Gorongosa e os mamíferos. Os macuas usarão barcos, mais sofisticados, para a próxima colonização. Os Gujarati regressarão. China imperará. Por enquanto, ficaremos com a imagem monumental, e o semblante real daquilo que nos pertence e dele não beneficiamos. Aprenderemos cortesias e formas mais corteses de comunicar. Insulares detestam descaso e destrato. Está sublinhando nas ondas serenas, muitas vezes, gigantes. Este oceano Índico nos ensina a viver sem pressa e nem ressentimentos. Atónitos com as democracias e descentralizações.(x)
Incaracterístico ostentar o nome Anjo. Serve, temporariamente, para tratar os bebés, depois desaparece. Quem, em adulto, continua sendo anjo tem outros pergaminhos. As famílias auguram por mensageiros para a ligação com os seres celestiais. Essa é a função dos anjos. O notável Professor António Batel Anjo era dos poucos Anjosregistados em cartório. Fez questão de não usar nunca o sobrenome. Gostava mesmo era de Batel. Fazia jus a sua postura e carácter. Afinal, ele sempre foi obstinado e predestinado a uma versão oposta a santidade. Jamais aceitou a submissão eviveu com vontades próprias, com uma voz que corporizava o oposto a normalidade. Era essa pessoa de multifacetados talentos, aptidões e a própria equação de um matemático, ensaísta, poeta e, curiosamente, personagem singularmente altruísta e pedagogo.
Um inconformado pesquisador, que não completou nenhum ciclo de vida. Nas suas tangentes, seu fôlego para empreender e encetar novas ideias e projectos era demasiado grande. Vivia um pouco para a frente do seu tempo. Uma corrida sprint, com rasgos de fundo e meio-fundo. Viveu como partiu, apressado. Ansioso por descobrir um novo arco-íris para colorir e resolver as múltiplas questões associadas à fraca qualidade do ensino em Moçambique e na terra que o viu nascer, essa antiga e tão nossa metrópole domesticada. Peregrinou em busca de alternativas à disfunção dos infixáveis dados estatísticos, à falta de critério e rigor nos números, na simbologia entre as datas e os eventos científicos, e nos temores que a matemática gerou nas crianças e adolescentes.
Batel nasceu gigante na sua fisionomia. Se tornou descomunal na forma de pensar. Um anjo metodicamente desproporcional e distanciado de todos os Deuses. Excepção era feita à Pitágoras, seu Deus e alguém que simplificou os códigos e padrões matemáticos. Os gregos acreditavam que a matemática era divina e vinha para salvar a humanidade e que as equações serviriam para cuidar da alma dos fiéis. Batel era, igualmente,apóstolo do teorema que defendia que as forças da natureza, a terra, o sol, a lua, os mares, os rios e o vento só existiam porque tinham a matemática na sua essência.
Na correria, e no método, quis fazer da sua peregrinação essa vida de adições, subtracções, multiplicações e divisões. Usou a versatilidade das letras para fazer uma coreografia de letras e sonhos. Na sua irreverência, questionou métodos, conceitos e verdades apresentados em relatórios de instituições de todas as geografias. Era avesso aos dados adquiridos de que a verdade absoluta provinha do hemisfério Norte. Rabiscou e reviutodos os relatórios e, de forma fugaz, questionou suas validades. Testou as incongruências, recorreu à dúvida metódica cartesiana para se assumir como filósofo da vida.
Batel quis deambular pela triangulação sobre as principais datas que o transportavam para outras galáxias. Uma espécie de triângulo que não eraacutângulo nem isóscele
Começo pelo 10 de Novembro, dia mundial da ciência para a paz e para o desenvolvimento. Data, tantas vezes, ignorada ou despercebida pelo cidadão mais comum e, igualmente, invulgar para tantos que aspiram aos diplomas universitários. O 10 de Novembro o motivava a trabalhar com grupos pequenos de estudantes, para que eles aprofundassem o seu conhecimento sobre os segredos da ciência e, principalmente, sobre as novidades da tecnologia.
Nos vários momentos de celebração e exaltação da ciência, tivemos o privilégio de beneficiar das feiras de robótica nas escolas. Centenas de alunos aprenderam a montar e usar robots e, de sobra, ficaram com os equipamentos para as suas escolas. Não teria dúvidas em afirmar que estes foram os mais profícuos, proficientes e extraordinários eventos que, alguma vez, foram organizados nas escolas. Os jovens competiram, aprenderam, ensaiaram e descobriram o segredo do branco, como diria a mãe de Eduardo Mondlane.
O 8 de Novembro é o dia de celebração de STEM(Science, Technology, E
Tinha a consciência do que diziam alguns relatórios e estudos globais. No início dos anos 2000, foi revelado que os alunos americanos não tiveram resultados positivos nas avaliações internacionais nas disciplinas STEM, na mesma proporção que os de outros países. Conclusões óbvias. Consequências imprevisíveis se o país tivesse de competir na economia global com uma força de trabalho mal preparada.
Os países com menores níveis de investimento nestas matérias, incluindo os EUA, ocupavam lugares pouco honrosos em avaliações de competência e conhecimento científico. O assunto era de natureza tão séria que persuadiu o Congresso norte-americano a deliberar por uma nova postura em relação a literacia tecnológica e,principalmente, ao ramo das ciências exactas. Esta é postura de países que entendem que a economia baseada no conhecimento, e impulsionada pela constante inovação, não se alheia e nem negligencia os avanços da IX revolução científica industrial.
Então, a insistência no STEM para Moçambique era a única forma de sinalizar que, também, este país que almejávamos próspero e desenvolvido, tenha de perseguir uma base da inovação que favoreça uma força de trabalho dinâmica, motivada, funcionalmente educada e munida de competências. A redução da carga de disciplinas gerais, para que a matemática pudesse ser obrigatória em todos os níveis e subsectores do ensino tem de ser mais que uma pretensão. Acreditava, de forma irredutível, que com os computadores e a robótica, num estágio ainda tímido, se poderia motivar e entusiasmar os jovens para um modelo de matemática mais lúdico, prático e apelativo. Aprender brincando e jogando fazia total sentindo.
Por alguma razão o nosso Professor era apologista do 19 de Outubro. Dizia, vezes sem conta, em alto e bom som, que era mais fácil recordar a data em que Samora Machel seguiu para a eternidade do que, propriamente, quando viu à luz do sol pela primeira vez. Ele entendeu, como poucos, o momento revolucionário em que Machel viveu e a sua forma peculiar de liderar os processos educativos. Decisões arrojadas. Educação como prioridade fundamental.
Batel escreveu, nesses textos soltos que um dia reuniremos em livro, que das palavras aos actos vão, por vezes, distâncias incalculáveis, mas, a liderança perdurará e se manterá, tão necessária e vital, para que os objectivos da sociedade sejam alcançados. Criticar, pensar de forma diferente, ter ideias novas é tudo o que uma liderança deve produzir. Esse o legado e o pensamento de uma sociedade que se quer dinâmica e forte, nas suas convicções sociais. Não vale a pena falar de desenvolvimento se não estivermos socialmente estruturados. Como, também, não faz sentido abordar sobre a educação, se não existe umasociedade democrática para lhe dar respaldo.
Batel era inconformado consigo mesmo. Depois de uma temporada na Universidade de Aveiro, emigrou para Moçambique. Esta foi a sua segunda pátria. Aqui viveu como qualquer cidadão nacional, longe de privilégios, próximos das vicissitudes e aporias, porém sempre comprometido com as diferentes causas educativas e sociais. Serviu como consultor no Ministério da Educação. Mas, foi, sobretudo, o mesmo docente e arrojado motivador científico.
Moçambique, assumia, detém um complexo sistema educativo, prenhe de descontinuidades e insolúveis problemas. Este universo de mais de oito milhões de alunos, treze mil escolas, mais de quarenta mil professores,
Ele quis aproveitar, com o seu entusiasmo, essa oportunidade única para ajudar a pensar e estruturar as metodologias de ensino, rever os manuais, procurar parcerias e criar projectos. O Projecto Pensas, com apoio do Instituto Camões, era um do projecto com o seu timbre, e foi implementado com muito sucesso, para milhares de alunos e outras centenas de professores e docentes. Trabalhou, analogamente, na revisão e concepção de compêndios de ciências exactas. Partiu ciente de que os alunos que não aprendiam;os professores não ensinavam e os gestores faziam de conta. Motivar estes grupos continua sendo urgente e imprescindível.
Algumas vezes mais desconsolado e outras menos, abordava a formação docente como algo que não poderia ser equivalente a formatação. Qualquer espaço de formação não poderia ser umafábrica de moldes, onde as peças teriam de sertodas iguais, e as que apresentassem algumadiferença, ou defeito, não deveriam ser postas de lado, destruídas ou transferidas para o armazém das inutilidades.
Ele era um adepto convicto de Manuel Castells;revisitava as teorias educativas de Pierre Bourdieue de Paulo Freire; delirava com os textos de José Saramago. Terminava seus emails com a seguinte frase: O heróico de um ser humano é não pertencer a um rebanho. Lia Fernando Pessoa, Eduardo White, Sophia de Mello Breyner Andresen, Noémia de Sousa e José Craveirinha, Eduardo White e Rui de Noronha. Para Batel Anjo, inequivocamente, o terreno da formação não deveria ser um processo mecânico, antes, um processo orgânico que permitisse o desabrochar da identidade e das capacidades de cada um. Isto só poderia acontecer se os professores se transformassem nos impulsionadores do talento dos seus alunos, e as escolas num espaço onde os jovens encontrassem inquietações reais, e as perseguissem. As inquietações teriam de se converter em paixões.
Batel fazia tudo com pressa e paixão. Nas cumplicidades que alimentaram nossos serões quase tertúlicos, muito cibernéticos, me enviava um poema para encerrar a troca de ideias. O último poema foi sugestivo. Teve um sentido de despedida quando sentiu que carecia de mais cuidados. Anos antes, ele havia beneficiado de um tratamento mais cuidado na África do Sul. Sabia, então, que a sua saúde exigia cuidados redobrados. Porém, nada me fez acreditar que não voltaríamos a fazer agendas, a projectar bienais e nem sequer organizar as feiras de robótica. Não realizaríamos mais minutos de ciência viva e nem traríamos, juntos, os alunos de tantas escolas secundárias que não de
Igualmente, me recusei aceitar que nunca mais teria um outro email com iluminadas propostas e desafios. Gravei, em memória, o último poema da nossa última conversa.
Na Primavera já não me encontras
Cansado do sol que não me aquece
Não, não sei se resisto muito mais
A falta de um abraço que me enlouquece.
Este poema de despedida antecipava uma partida anunciada. Sobreviver as pandemias e fazer as despedidas por outras patologias para as quais a vida ainda busca soluções.
Nem um beijo, nem sequer me despeço
Quero que o longe seja o infinito
Não espero em mais nenhuma estação
Hoje decidi, não vivo mais para ti no final de cada tertúlia.
Quis revisitar estas memórias na época em quem que procurava as palavras certas para dizer um adeus. As palavras que nos acompanham para a eternidade não possuem o mesmo significado. O silêncio substituiu todos os algarismos e equações. As fracções e a álgebra que servem de elevador para dias mais iluminados.
Agora renascemos a Bienal. Trouxemos o Batel Anjo de volta as nossas salas. Ele continua aqui presente, fazendo a sua apresentação, transpirando e exigindo as melhores condições para os seus estudantes, sempre.
A Osuwela e a Universidade Pedagógica do Maputo foram o seu último local de trabalho. Se orgulhava de poder ajudar e fazer da sua faculdade um local distinto e de excelência, aberto e interactivo. A prova deste amor incondicional gerou esta bienal. Oxalá que toda a poesia sirva para alimentar e fertilizar os jovens e capacita-los para um novo mundo de descoberta e de paixão. (X)
Ainda na ressaca da celebração dos 60 anos do ensino superior em Moçambique – que foi uma soberba oportunidade para radiografarmos os descaminhos e os caminhos, sobre os quais assentaram as trajectórias do nosso, ainda, incipiente e descaracterizado ensino superior – revisitamos, igualmente, o ethos universitário, os caminhos do seu futuro e o papel do Estado, pedra angular do sistema de educação em Moçambique, considerando a força e tendências neoliberais (de privatização, mercantilização, cortes orçamentais e redução do financiamento público, dentre outras) que tentam, amiúde, aproveitar as crises institucionais e de identidade, do nosso ensino, para o tornar irrelevante e desnecessário.
A nova visão do ensino superior para 2030, advogada pela UNESCO e, por arrasto, por todas as instituições de Bretton Woods, do qual somos signatários cegos, e seguimos, de forma tão obediente, todas as cartilhas, defende que, neste mundo em profundas transformações e transição digital, no que Yuval Noah Harari (2023) designa por “mundo dos algoritmos”, as instituições de ensino superior apenas sobreviverão para as pesquisas em inteligência artificial, big data, robótica, e a internet das coisas.
Ainda condoídos pela lastimável partida de Pierre Bourdieu, já na eternidade, mas sem nunca abandonar o mundo, fica a recusa tácita de que o ensino superior deixará de ser relevante, pois, qualquer que seja a transição tecnológica, terá que assentar em princípios humanistas e sociais.
O mundo não é feito de robôs, mas de emoções, sentimentos, sonhos e ambições. Em suma, seres humanos. Portanto, não são os jovens que se distanciam do ensino, e do ensino superior em particular, mas, são os próprios Estados que cedem terreno às pressões do FMI e do Banco Mundial e às teorias draconianas de desinvestimento nos sectores da educação, saúde pública, cultura e demais áreas sociais. Não nos esquecemos da célebre nota oferecida pelo Banco Mundial, numa reunião com dirigentes do ensino superior, em Harare, no ano de 1986, onde afirmara que o ensino superior em África era um luxo, sugerindo que as instituições do ensino superior em África deviam ser fechadas e os seus estudantes enviados à Europa para formação!
Desde o advento da independência, em Moçambique, em 1975, e considerando até todas as aporias e vicissitudes que tipificaram este período, Moçambique dedicou o melhor do talento e esforço económico aos diferentes subsectores da educação. As políticas da época, sobretudo, convergiam na diversificação de oportunidades com o apoio do mundo ocidental, oriental e dos países não-alinhados.
Não foi por mero acidente de percurso que os moçambicanos beberam das experiências dos Estados Unidos, das academias da França, Alemanha e Suíça, das escolas superiores de Moscovo, Hungria, Cuba e Bulgária, das conceituadas universidades da Suécia, Reino Unido, Portugal, e até das universidades solidárias do Brasil, da Argentina, da Austrália e, mais recentemente, do Japão, da China e da Coreia do Sul.
Este conhecimento permitiu que o ensino superior público estruturante tivesse corporizado as principais necessidades económicas do país e do seu desenvolvimento, minimizado os desequilíbrios regionais e, sobretudo, criado um modelo de ensino. Um ensino que busca identidade, relevância e ethos.
Ainda temos presente como, nos últimos 30 anos, o desinvestimento feito nas escolas primárias públicas conduziu à mercantilização do próprio ensino primário, ditando a subsequente morte da qualidade desse ensino público. As escolas privadas cresceram à custa dos professores das escolas públicas, que abocanharam os gestores e, até, alguns espaços físicos que anteriormente serviram ao Estado.
Há cerca de 20 anos, assistimos, impávidos e serenos, à criação de escolas secundárias privadas, por vezes, até associadas ao ensino superior, que causaram a mesma erosão junto das escolas do Estado. O fenómeno se repetiu com o aliciamento aos principais gestores e docentes, e, em muitos casos, ao material pedagógico, como livros e outros, que outrora pertenceram ao sector público.
Se tivéssemos que elaborar um ranking das principais escolas no país, notaríamos que as escolas primárias e secundárias privadas se encontram há anos-luz das escolas públicas. Esta, infelizmente, tem sido a tendência que se verifica em outros Estados de natureza neoliberal ou que aspiram a esse estatuto. Todavia, em qualquer um desses países, o que sucede é que os estudantes vão para as escolas privadas almejando um lugar nas universidades públicas. Têm a consciência de que os melhores professores, os melhores laboratórios e as melhores pesquisas continuam sob a responsabilidade do Estado.
Ao revisitarmos a lei no.8/2021 – a Lei do Sistema de Segurança Social Obrigatória dos Funcionários e Agentes do Estado, que estabelece uma reforma compulsiva para os funcionários públicos com mais de 60 anos – assistimos, de alguma forma, o mesmo filme bem conhecido que se repetiu com o ensino primário e secundário. Com efeito, esta saída de professores, programada, porém, compulsiva, englobando, grosso modo, 450 docentes e investigadores de todas as instituições públicas de ensino superior, sugere um desinvestimento intelectual, financeiro e moral cujas consequências serão imprevisíveis.
De algo podemos ter a certeza. As instituições privadas, que até representam já quase o dobro das instituições públicas, são as grandes beneficiárias de todo o investimento feito na formação de capital humano pelo Estado, à custa de muitos sacrifícios e de uma visão de futuro por parte de todos os sucessivos governos deste país.
Nem a indicação de que estes docentes e intelectuais, ora em desligamento, podem ser substituídos, servirá de solução perante a derrocada eminente do ensino superior, pois, não se substitui a experiência e, muito menos, a maturidade. Para se atingirem os níveis mais altos da carreira docente são necessários alguns decénios. Os processos de substituição vão exigir alguma serenidade, acompanhamento, rigor e um sistema de promoções mais célere. Mesmo assim, o argumento de racionalidade financeira, de modo a promover eficiência na contenção da despesa pública é questionável, uma vez que, indirectamente, os reformados continuarão a receber as suas pensões (de fundo diferente, mas ainda assim!) e os seus “substitutos”, os vigorosos graduados da geração da viragem, tornarão ainda mais pesada a despesa pública.
As apostas do Estado moçambicano, ao longo dos seus 48 anos de independência, podem até não ter surtido os melhores efeitos para todo o sector da educação, mas garantiram a funcionalidade do sector público, do empresariado nacional e, sobretudo, da estabilidade das instituições.
Não questionamos o mérito ou o demérito das dezenas das instituições de ensino superior que foram criadas, e o local onde elas funcionam ou foram instaladas. Uma forma de conferir robustez a estas instituições foi a criação do Conselho Nacional de Avaliação de Qualidade (CNAQ), celebrando agora 15 anos, que estabeleceu os princípios e normas que regem as instituições de ensino superior. Paradoxalmente, o CNAQ tem princípios que podem até comprometer as instituições do próprio Estado, uma vez que com a aposentação destes professores, elas deixarão de ter as exigências mínimas para suportar os seus cursos de pós-graduação.
Existe uma expectativa de que as duas mais antigas instituições de ensino superior de Moçambique – a UEM e a UPM – se transformem em instituições de pesquisa e de pós-graduação. Esta é a recomendação dos seus planos estratégicos para os próximos anos. A erosão de capital humano de que deverão sofrer voltará a transformar essas instituições em apenas locais de ensino, e nunca de pesquisa ou de extensão universitária. Este poderá ser o desmoronamento de um sonho de colocar o ensino moçambicano com a relevância que o mundo globalizado exige. Temos já muitos exemplos de estudantes do sector público que brilham em diferentes academias do mundo. Deveríamos ter o dobro ou o triplo destes talentos. Porém, estes desideratos poderão sofrer um sério abalo e poderemos inclusivamente não colocar à disposição do Estado as ferramentas teóricas e conceptuais sobre as quais deveria assentar o nosso desenvolvimento social, cultural, tecnológico e industrial.
Estejamos claros sobre o que significará, nos actuais moldes, a reforma obrigatória de docentes universitários. Por um lado, perder-se-á imenso em capital humano, experiência e conhecimento epistemológico, uma vez que os professores visados possuem ímpares qualificações e competências em áreas de especialização, e a sua saída afectará, irreversivelmente, a qualidade do ensino universitário. A sua saída repentina poderá, igualmente, ameaçar a continuidade dos cursos e programas académicos de pós-graduação sob sua responsabilidade ou monitoria. Adicionalmente, as universidades ficarão, repentinamente, com escassez de especialistas em determinadas áreas, muitas delas sensíveis aos desafios de desenvolvimento nacional.
Mais grave ainda, a saída compulsiva de docentes poderá impactar, grandemente, a produção científica nas universidades onde vinham prestando serviço, afectando seriamente a sua reputação e relevância. Aliás, um efeito imediato desta medida vai ser exactamente esta: a perda imediata dos lugares nos rankings africanos e globais do ensino superior. Contudo, como dito antes, o ensino privado continuará a ser o maior beneficiário desta medida, pois estes quadros, no auge da sua produção científica, juntar-se-ão à projectos já estabelecidos ou criando novos, formando assim verdadeiros conglomerados que tenderão a monopolizar o acesso ao ensino superior, tornando-o elitista, tal como aconteceu com outros subsistemas de educação.
O mercado de emprego mais exigente, sobretudo, as multinacionais e não só, poderão passar a contractar exclusivamente graduados destas instituições privadas, se não quiserem correr o risco de contractar graduados do público, de qualidade questionável nessa altura ou ainda reduzir os seus planos de expansão por falta de capital humano, como já tem estado a acontecer.
Por outro lado, o argumento do ajustamento financeiro que justifica a reforma compulsiva parece ser, por sua via, fundamentalmente contraditório. Com efeito, ter na porta de saída um número significativo de docentes implica um igual ou maior esforço de investimento com novos contratos e em capacitações. Isso exigirá excepcionais recursos financeiros e programas de formação.
Outro assunto, ainda não devidamente lançado a debate, é o do impacto da reforma nas relações profissionais e interpessoais dentro da comunidade académica – a implementação de uma reforma obrigatória pode gerar insatisfação e ressentimento entre os docentes afectados, com implicações imprevisíveis no ecossistema universitário e tornando pernicioso tanto o engajamento como a colaboração intergeracional, entre os docentes mais novos e os mais experientes.
Estes exemplos com o ensino superior podem ser apenas uma ponta de um iceberg que atingirá a saúde, a segurança e áreas sociais afins, sob a capa de se fazerem ajustamentos financeiros e devidos balanços nas folhas salariais, nesta tentativa de redução da massa salarial do sector público que é pesada por outros motivos, mas que não tem, a rigor, nada a ver com os investimentos que ainda precisam de ser feitos em áreas sociais como as da educação e da saúde que, pelo seu estatuto soberano, deviam ser preservadas.
A educação é um produto de construção contínua, colectiva e, embora sujeita à reformas, é o garante da identidade de um povo. África e Moçambique perderam muito com a colonização, onde sua identidade intelectual foi brutalmente assassinada e substituída. Com as independências, tentou-se resgatar algo, em especial, o orgulho de se ter um espaço de produção científica nativa, com os seus respectivos desafios. Temos a responsabilidade de garantir este sonho de Mondlane.
Por fim, uma verdadeira e sistemática renovação do corpo docente se faz por via de reinstituição de entradas por via de monitores porque estes vêm do acompanhamento dos professores com experiência acumulada. Por outro lado, a saída honrosa mas, também, proveitosa para a universidade que despede, se faz por via da figura de professor emérito, uma figura que continua a servir e a honrar a universidade, para além da reforma.
O dia 5 de Maio foi oficializado em 2009, com o propósito de promover o sentido de comunidade e de pluralismo dos falantes do português na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Desde então, esta data celebra este idioma como parte da identidade de todos estes países e povos. Num dia comemorativo tão especial como o de hoje, gostaria de fazer uma menção especial a dois feitos extremamente marcantes.
O primeiro, de efeito extraordinário, é o da premiação da escritora moçambicana Paulina Chiziane, a vencedora do Prémio Camões 2021, escolha unânime anunciada no dia 20 de Outubro de 2021 e que só hoje, dia 5 de Maio de 2023, finalmente, chegou às mãos da legítima dona. Este prémio reconhece a vasta produção e recepção crítica da Paulina Chiziane, como também o reconhecimento académico e institucional da sua obra, sobretudo a importância que dedica nos seus livros aos problemas da mulher moçambicana e africana.
Esta escritora, a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, tem desenvolvido uma relação muito próxima com a UP-Maputo, a quem já atribuímos, num passado muito recente, um título Honoris Causa e que tem tido presença regular nos eventos científicos e culturais organizados pela nossa universidade. A Paulina Chiziane escreve em português, língua que aprendeu a falar na escola de uma missão católica como muitos outros moçambicanos da sua geração o faziam pela primeira vez. Ela é, indubitavelmente, a prova viva de que, mesmo sendo de origem humilde e sem nenhum arcaboiço linguístico de berço, é possível fazer grandes coisas e chegar a tão destacado reconhecimento no espaço lusófono global. Hoje celebramos, mais uma vez, este feito que projecta e faz brilhar todo o nosso país e o nosso povo na arena internacional.
O segundo feito, não menos importante e também de efeito extraordinário, é o da Ludmila Bata, estudante do 2° ano do curso de Jornalismo, ministrado pela Faculdade de Ciências da Linguagem, Comunicação e Artes (FCLCA) da UP-Maputo, que foi declarada vencedora do Prémio Eloquência Camões do ano 2023. Esta vitória tem um sabor especial para a UP-Maputo, especialmente se se tomar em consideração que a Ludmila Bata, nossa estudante, destacou-se num universo extremamente competitivo de 49 estudantes pertencentes a 6 universidades nacionais. É importante frisar que o Prémio Eloquência Camões, organizado, em parceria, pelo Camões – Centro Cultural Português em Maputo e pelo Camões – Centro de Língua Portuguesa em Maputo, pretende ser uma alavanca institucional para a descoberta de novos talentos na redacção e na oralidade em língua portuguesa.
A Ludmila Bata demonstrou, com a sua vitória, que é possível fazer história, ainda em tenra idade e sendo também mulher, como a Paulina Chiziane. Num dia especial como o de hoje celebramos, também, este feito que projecta e faz brilhar os nossos estudantes e a nossa comunidade universitária na arena nacional.
Destacar estes feitos, num dia que exaltamos a língua portuguesa, como nosso património cultural e histórico, faz a nossa celebração mais especial e simbólica. Aliás, tornou-se uma tradição – uma boa tradição, diga-se! – que nos juntemos na UP-Maputo, no dia 5 de Maio de cada ano, para comemorar o dia Mundial da Língua Portuguesa e, igualmente, para celebrara amizade entre os povos que partilham esta língua.
A língua portuguesa é uma das mais ricas e influentes línguas do mundo e, como Reitor desta universidade, tenho orgulho em fazer parte de uma comunidade académica que valoriza e celebra a sua riqueza e diversidade. Nestas salas e corredores revisitamos a língua portuguesa como factor de unidade nacional.
A língua portuguesa é uma língua viva, dinâmica e em premente transformação, falada por mais de 265 milhões de pessoas em todo o mundo. É a língua oficial de 9 (nove) países e de organizações como a CPLP, a SADC, a União Europeia, o Mercosul e a Organização dos Estados Ibero-americanos.
Mas, a língua portuguesa é muito mais do que uma língua falada ou escrita. É um património cultural e histórico que representa a rica herança e a diversidade das sociedades e culturas que a falam, cantam, dançam, escrevem e declamam poesia. Na essência, em português se comunicam. É, por isso, necessário que olhemos para a língua portuguesa sem preconceitos. Que assumamos esta língua como nossa! Nenhum angolano, cabo-verdiano, português ou brasileiro fala a língua portuguesa como nós. O nosso português moçambicano é único. Nós, moçambicanos, soubemos tornar o português numa língua melodiosa, poética e sensual. Neste momento, a língua portuguesa não pode ser mais vista como a língua do outro. O outro não consegue falar um português tão belo como o nosso!
Neste simpósio, debatemos a especificidade do Português de Moçambique na diversidade da língua portuguesa. Temos, hoje, a oportunidade de conhecer melhor a língua em que nos comunicamos diariamente e de compreender o contributo de Moçambique para a afirmação da língua portuguesa no Mundo, mas, não menos importante, temos também uma oportunidade para perceber de que modo o Português de Moçambique pode contribuir para o nosso desenvolvimento individual e colectivo.
Retomamos a segunda parte do texto publicado recentemente, sobre a necessidade da reforma da estrutura da organização académica no subsistema de ensino superior em Moçambique. A proposta, da autoria do Professor Brazão Mazula, surge no seguimento das celebrações dos sessenta (60) anos do Ensino Superior em Angola e em Moçambique, decorridas em 2022. Na referida proposta, Mazula sugere que o departamento e o respectivo chefe, como unidade orgânica primordial na organização da actividade académica, tivessem maior autonomia, autoridade e legitimidade científica do que o director da faculdade, enquanto unidade orgânica académica político-administrativa.
A pirâmide invertida da autoridade académica
A unidade mínima de produção académica é o docente-investigador, ou o professor, nas suas múltiplas e diferentes categorias. Os processos de gestão administrativa e burocrática na academia, em princípio, se constituem para criar as condições ideais para aumentar a produção e produtividade dos académicos. Actualmente, na academia moçambicana a pirâmide está invertida. Os académicos (professores) é que prestam contas aos administradores, no lugar de serem os administradores a prestarem conta aos académicos.
Os académicos é que têm iniciativa para propôr novos cursos, preparar as aulas e criar projectos que concorrem aos fundos de pesquisa. Todavia, os académicos depois se sujeitam aos ditames e vontades do poder discricionário dos chefes, a todos os níveis, particularmente os directores de faculdade e, nalguns casos, aos chefes de departamentos, até para conseguir uma simples assinatura num pedido de autorização para participar numa conferência da sua disciplina.
Esta inversão da pirâmide de autoridade académica infantiliza os académicos, principalmente os professores, e transfere todo o incentivo dos processos académicos para as estruturas de gestão administrativa. Consequentemente, esta inversão intensifica a luta pelos cargos de chefia e direcção que se tornam mais politizados.
A inversão da pirâmide também cria incentivos para que os chefes sejam incluídos nos projectos de académicos e em publicações, mesmo sem darem alguma contribuição significativa em termos científicos, mas, simplesmente, para não dificultarem a implementação dos mesmos. O mesmo ocorre com a supervisão de trabalhos de pesquisa para dissertação onde vários estudantes, até em áreas que não são do domínio científico do chefe, são sujeitos a mau acompanhamento e à reprodução da mediocridade.
Faz-se vista grossa ao incestuoso procedimento de ter um director de faculdade a presidir um júri ou supervisionar um estudante, na sua faculdade, num contexto em que ninguém pode ousar questionar a autoridade do chefe sem sofrer represálias, muitas vezes, com efeitos catastróficos para a carreira profissional.
A arbitrariedade de alguns chefes atinge níveis exagerados de abuso de poder. Alguns chegam ao ponto de usurpar, impunemente, a propriedade intelectual de projectos concebidos por colegas. Tratam-nos como (in)subordinados, entre outros comportamentos perversos protegidos pela autoridade de gestão administrativa, incluindo a possibilidade de instaurar processos disciplinares ilegítimos aos colegas que resistem ao despotismo administrativo na academia.
A academia moçambicana não matou, de pequeno, o (crocodilo) Leviathan académico que devora, sem dom nem piedade, os seus melhores filhos. Mazula tem o mérito de ter lançado o repto para um debate sobre a reforma académica. Quanto a nós, pensamos que este é um debate necessário em todas as instituições de ensino superior moçambicanas que pretendem ser uma Universidade de Pesquisa e Pós-graduação de facto.
A remuneração de cargos de gestão académica
Tivemos o privilégio de colaborar em sistemas onde o director de faculdade, ou mesmo o chefe de departamento, é uma função não-remunerada. Quando muito, atribui-se um subsídio que não suplanta o vencimento regular como académico de acordo com o enquadramento na carreira profissional. Este princípio não se aplica ao Corpo Técnico e Administrativo que faz carreira diferenciada, ainda que dentro da academia.
Nesses sistemas, e de forma rotativa, todos os professores têm a prerrogativa, e por vezes a obrigação, nalgum momento da sua carreira, de assumir a direcção da sua unidade orgânica para melhor servir aos seus colegas. Ser ‘chefe’ nestes casos não é um privilégio, pelo qual vale tudo, mas um dever de servir aos colegas com responsabilidade.
Todos os professores devem, pelo menos uma vez, sacrificar alguns anos do seu trabalho, estritamente, académico para gerir a Faculdade e/ou o Departamento como parte das suas obrigações e, para isso, não precisam de ser remunerados além do salário normal, pois todos passarão por isso, rotativamente. Não se é chefe para se servir e abusar dos pares, mas para servir aos colegas e ao templo da ciência.
Ainda nesses lugares, a principal função do director e do chefe de departamento é a de garantir as condições de trabalho dos seus colegas. Durante dois ou três anos, o colega se dedica à gestão. Ninguém, após cumprir o seu tempo na gestão tem interesse em lá permanecer, querendo retomar a sua função principal de académico.
No entanto, em Moçambique, pelo contrário, temos indivíduos que querem ser chefes vitalícios na academia. Esse é o maior sinal de mediocridade e parasitismo académico. Querem ser chefes eternos e, ao mesmo tempo, académicos a tempo inteiro. Numa universidade histórica do país, por exemplo, houve várias tentativas de propor a extensão dos mandatos de directores de faculdades de três para cinco anos renováveis. Não podia haver proposta mais reveladora do carácter profano e perverso do sentido da academia e da inversão da pirâmide da autoridade académica. Enquanto esta inversão se mantiver, haverá cada vez mais déspotas académicos atraídos pelo poder administrativo a lutar por cargos administrativos do que académicos, com mérito, predispostos a ocupar cargos de chefia e direcção com base na confiança.
Há indivíduos com reputação de académicos, mas cuja carreira académica destaca-se apenas pela ocupação de cargos de chefia e direcção, desde chefe de secção, chefe de departamento, director de faculdade, até ao topo da gestão universitária. No entanto, como académicos deixam muito a desejar aos seus próprios pares, pois a sua produção académica não tem nenhum mérito reconhecido entre os seus pares. Se não fossem chefes ninguém lhes reconhecia o mérito académico. A autoridade académica que detém deriva da ocupação de cargos de confiança, chefia e direcção, na gestão e administração das unidades orgânicas.
Há chefes com inveja dos colegas que se dedicam à vida académica como vocação. Esses chefes usam o seu poder administrativo para impedir, a todo o custo, a progressão académica dos colegas com recurso a todo o tipo de esquemas e manipulação de mentes de colegas, estudantes e da opinião pública.
Escondem a sua mediocridade nos cargos de chefia e direcção que ninguém pode ousar questionar sob pena de sofrer represálias. Instalam um clima de medo e terror, manipulam processos de sucessão, supostamente democráticos, nos cargos de chefia e tornam a academia nesse tempo profano denunciado por Mazula.
Em resumo, Mazula tem razão – o templo da academia ou da ciência foi profanado. O sacrilégio anuncia a miséria da academia ou, ainda, a academia da miséria.
A reforma do departamento, receamos, poderá não ser suficiente para devolver a sacralidade do templo profanado. A estética da vulgaridade se revela no dramático esplendor diurno da ousadia da mediocridade decorada com altos títulos académicos ocupando as poltronas do poder-administrativo Leviathanico, ou mesmo satânico, dos cargos de confiança, chefia e direcção. Um novo templo exorcizado se faz necessário onde a autoridade escolástica do professor-investigador guiado pelo Bourdieuiano ‘líbido sciendi’ se sobrepõe, de forma responsável, com pesos e contrapesos, à arbitrariedade despótica e corrupta instaurada no templo da ciência.
[1] Sociólogo, especialista em Estudos do Ensino Superior
[2] Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo
A presente reflexão aborda sobre a necessária reforma da estrutura da organização académica no subsistema de ensino superior em Moçambique. No seguimento das celebrações dos sessenta (60) anos do Ensino Superior em Angola e em Moçambique, decorridas em 2022, retomamos uma das propostas apresentadas pelo Professor Brazão Mazula. O académico e filósofo da educação, ex-Reitor da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), Brazão Mazula, participou de uma mesa-redonda que discutia os desafios do ensino superior. Mazula apresentou um diagnóstico geral e propôs uma modesta reforma organizacional da academia.
Nesse contexto, Mazula sugeriu que o departamento e o respectivo chefe, como unidade orgânica primordial na organização da actividade académica, tivessem maior autonomia, autoridade e legitimidade científica do que o director da faculdade, enquanto unidade orgânica académica político-administrativa.
A proposta de Mazula foi mais longe, ao sugerir que o mandato do chefe do departamento académico, em termos de longevidade em anos, fosse mais extensivo do que o do director de faculdade. Mazula propôs também que a nomeação do chefe de departamento académico fosse autónoma e não dependesse da nomeação do director da faculdade.
A proposta de Mazula surge como um contributo para reflectir sobre as condições de possibilidade destas universidades de pesquisa e pós-graduação face aos desafios e perigos no actual contexto.
Mazula apontou alguns pecados da academia que, em parte, são associados ao actual figurino do papel e função do director de faculdade como autoridade académica de gestão administrativa, que toma precedência e maior relevância no poder académico, administrativo e organizacional da academia do que o departamento, e o respectivo chefe, considerado como unidade primordial da actividade académica.
De acordo, mas...!
No geral, concordamos com a proposta Mazuliana e, por isso, pretendemos radicalizá-la. Radicalizar a proposta significa propôr um modelo de estrutura organizacional académica que dê precedência à dimensão académica e não à dimensão administrativa da academia – aliás, uma tendência global resultante das abordagens da Nova Gestão Pública (New Public Management).
A Nova Gestão Pública (NGP) surgiu, inicialmente, em países anglo-saxónicos, tais como Estados Unidos, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia, a partir do início dos anos 1980; mas, depois, tornou-se num movimento global com propostas teóricas de reforma da administração pública burocrática de modo a dotá-la de modelos de gestão inspirados na administração de empresas privadas percebidas como menos burocráticas, flexíveis e cujos resultados eram orientados para as necessidades do mercado.
Em países como Moçambique, não existe evidência de que o ascendente da administração pública e burocrática resulte da NGP, mas parece ser mais uma herança da planificação centralizada do Estado e dos vícios de modelos de liderança institucional e organizacional com tendências autoritárias, onde o chefe exerce o poder burocrático de forma discricionária, arbitrária, incontestável e com poucos ou quase nenhum mecanismo efectivo de pesos e contrapesos.
O profanado Templo da Ciência
Mazula defendeu, analogicamente, que uma Universidade de Pesquisa e Pós-graduação é algo próximo ou igual a um templo da ciência. Assim, como que um templo profanado, Mazula apontou aspectos que são incompatíveis com uma Universidade de Pesquisa e Pós-graduação e cujos sinais estão manifestos na nossa academia. Esses aspectos elencados ilustravam o facto das instituições de ensino superior moçambicanas terem sido transformadas em instrumentos de exibição de uma falsa envergadura económica e superioridade intelectual, de rampas de lançamento de carreiras políticas, de casas bancárias onde se mercantiliza currículos e onde o estudante é apenas tido como um mero cliente, de centros de formação rápida e massiva sem o devido acautelamento em qualidade, e de clubes de exaltação da personalidade dos seus dirigentes máximos. Estas referências todas ilustram um Mazula indignado com a profanidade da academia moçambicana. A nossa proposta é radicalizar a proposta de Mazula.
Radicalizar a proposta de Mazula
A proposta de conceder ao chefe de departamento maior autoridade académica do que o director de faculdade nos pareceu pertinente e necessária, ainda que insuficiente como solução para parte dos problemas arrolados por Mazula que concorrem para a profanidade do templo da ciência. Os problemas arrolados, que contaminam o templo, parecem-nos transcender a vida das faculdades, em si, e abrangem comportamentos individuais de académicos e de algumas lideranças das instituições do ensino superior.
No essencial, a proposta de Mazula não é apenas a de uma reforma administrativa conferindo mais poder ao chefe de departamento e um mandato mais longo do que o do director da faculdade; é a de uma reforma da função académica do departamento e do respectivo chefe. Trata-se de uma proposta importante e de uma oportunidade para reflexão que só podia ser trazida ao público, sem receios, por um académico da estatura intelectual de Mazula.
O poder académico e administrativo
Na academia coabitam, cada vez mais em conflito, dois tipos de poder. Por um lado, o poder académico, que radica dos processos académicos de ensino, investigação e extensão, cuja autoridade resulta do reconhecimento do mérito académico e científico legitimado pelos pares. Por outro, o poder político-administrativo na academia, que radica dos processos de gestão administrativa e financeira dos diferentes níveis e unidades orgânicas das instituições de ensino superior.
Estes dois tipos de poder podem, muitas vezes, se confundir na academia. Principalmente na medida em que mais detentores do poder político-administrativo na academia vão adquirindo títulos e graus académicos. Nos países em que a capacidade e mecanismos de controlo do rigor científico e académico não é inteligível e institucionalizado, a possibilidade de distinguir académicos e administradores é ainda menor.
No caso de Moçambique, a estrutura orgânica das unidades académicas e administrativas assemelha-se àquela da administração pública, com Divisões, Secções, Departamentos e outras unidades de cariz especificamente académico, tais como Grupo de Disciplina, Grupo de Pesquisa, Faculdades, Centros de Pesquisa e Extensão, entre outras unidades. Existem também unidades de gestão, estritamente, administrativas e financeiras, como direcções que se ocupam da provisão de bens e serviços académicos, pedagógicos, administrativos e financeiros.
A unidade orgânica que mais se destaca nos processos académicos é a Faculdade. No entanto, a função do gestor da faculdade, ou mesmo do departamento, na configuração das instituições de ensino superior moçambicanas é, fundamentalmente, administrativa e financeira. Para exercer as funções de director de faculdade ou um chefe de departamento, cargos muitas vezes exercidos por académicos, não se requer conhecimento especializado. Na verdade, para se ser director, muitas vezes, basta preencher requisitos burocráticos, político-administrativos e existir uma vaga.
Nalguns casos, abre-se a excepção para os directores de Cursos, mas há muitos casos em que mesmo a este nível não é imperioso que alguém tenha alguma especialização no curso que dirige, o que constitui um verdadeiro sacrilégio académico. Ocorre, porém, que ao ascenderem aos cargos de gestão, mais político-administrativos do que académicos, indivíduos com credenciais académicas questionáveis passam a exercer o poder e autoridade administrativa sobre académicos com autoridade e legitimidade científica nacional e até internacional.
Esta situação tem sido fonte de conflitos e distorções do templo da ciência, propiciando alguns dos vícios apontados por Mazula. Entre a autoridade científico-académica e a autoridade político-administrativa leva vantagem a segunda, concorrendo assim para uma maior politização e perversão da academia. Assim, a luta política para a ascensão aos cargos de chefia e direcção dos processos administrativos e financeiros é inversamente proporcional à luta pelo reconhecimento académico-científico pelos pares nas áreas de especialização.
É um facto que existe a tendência de associar a ocupação de certos cargos político-administrativos à exigência de credenciais académicas. Por exemplo, cada vez mais se admite menos que um director de faculdade não ostente o título de doutor. O pressuposto lógico, mas não necessariamente funcional, é de que um doutorado teria maior discernimento e competência para administrar assuntos académicos.
À medida que as unidades orgânicas estão cada vez mais dotadas de indivíduos com doutoramento, e estando os incentivos administrativo-financeiros indexados aos cargos de chefia e direcção, e não às funções académicas, a luta por cargos na académia tornou-se tão, senão mais, politizada do que a luta por cargos políticos noutros sectores da função pública ou nos partidos políticos.
A luta política por cargos político-administrativos na academia passa também pelo controle dos recursos financeiros e adopta, cada vez mais, métodos escrupulosos. Nessa luta, vale tudo para eliminar inimigos, reais ou imaginários, incluindo o uso da autoridade administrativa para perseguir ou obstruir a progressão na carreira, retirar projectos de investigação com financiamento e até mesmo o ataque pessoal e à dignidade, inclusive com recurso ao assassinato público de carácter. Este fenómeno do assassinato público do carácter tornou-se facilitado na era da Internet e das redes sociais, mas também na de uma pseudo-imprensa que sobrevivem do suborno e de sensacionalismo baseado em escândalos fabricados. Este fenómeno, que um de nós designa, nos seus estudos, de economia moral do caractercídio – ou linchamento de carácter – ocorre num país onde a ética e deontologia profissional de alguma imprensa ainda é bastante negligenciada e a difamação impune.
A estética dos conflitos académicos pelo controle dos recursos de poder académico e político-administrativo, particularmente na era das redes sociais e da mídia sensacionalista, atingiu níveis de uma vulgaridade indescritível. O poder político-administrativo na academia moçambicana, do topo à base, funciona de forma bastante discricionária e até mesmo arbitrária. Os chefes, a todos níveis, até mesmo os chefes de departamento, operam numa estrutura burocrática e autocrática que os torna extremamente poderosos a ponto de nem mesmo os órgãos colegiais, altamente manipuláveis e corruptíveis, terem capacidade de contrabalançar esse excessivo poder.
O figurino emprestado da função pública do cargo de confiança, quando introduzido na academia, cria uma cultura perversa de seguidismo, culto de personalidade, compra e venda de lealdade e favores. No geral, a importação do modelo de cargos de chefia e direcção por confiança da função pública para a academia, mas em particular ao nível do director de faculdade, elimina a noção de académicos como pares (iguais) e introduz uma hierarquia administrativa que permite a alguns chefes usar o seu poder discricionário de nomeação dos colegas ‘pares’ para cargos de confiança como moeda de troca, abusar do poder, perseguir colegas e até mesmo exigir favores sexuais às mulheres – nomeando-as para cargos de confiança em nome de suposta igualdade de género.
A questão do género, legítima que seja, também é um campo bastante susceptível à manipulação e usada como arma de arremesso para eliminar opositores com base em falsas denúncias. Numa sociedade onde a lógica do raciocínio assemelha-se a ‘acusação de feitiçaria’, como diria um renomado sociólogo, do tipo não há fumo sem fogo, basta acusar. Assim, se perpetua uma perversa economia moral do género, que alimenta denunciantes, fabrica vítimas e, com efeito, negligencia a verdade.
Para garantir a sua segurança nos cargos, os chefes, principalmente os directores de faculdades, podem cooptar e aliciar jovens, estudantes e docentes no início da carreira académica, sedentos de confirmação como quadros efectivos ou em busca de promoção na carreira, e os colocam como chefes de departamentos ou nos órgãos colegiais onde servem de marionetas do chefe para legitimar processos que não passariam, muitas vezes, ao escrutínio crítico de académicos mais seniores.
Assim, os órgãos colegiais não passam de mais uma fachada democrática na academia, no lugar de serem espaços de análise crítica dos processos de gestão académica. Diante dos problemas estruturais da academia moçambicana aqui descritos, parcialmente, conferir maior autonomia e poder ao chefe de departamento, como propõe Mazula, ou estender o mandato para além daquele do director da faculdade, pode ser parte da solução, mas não é o remédio santo para voltar a sacralizar o templo da ciência. Para ser efectiva, a proposta Mazuliana de reforma académica teria que ousar ir mais longe e ser mais radical.
(continua)
[1] Sociólogo, especialista em Estudos do Ensino Superior
[2] Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo
Patrício Langa[1] e Jorge Ferrão[2]
O Laissez-faire é um termo da língua francesa que simboliza o liberalismo económico. Na acepção mais radical do capitalismo, o neoliberalismo, o mercado funciona livremente sem ingerência do Estado. O papel do Governo, em representação do Estado, é mínimo. O Governo estabelece o quadro legal, normativo e regulatório suficiente para proteger os direitos de propriedade privada. O princípio da mão invisível, termo cunhado pelo economista clássico Adam Smith, determina a auto-regulação do mercado criando as condições de possibilidade para a troca livre de bens e serviços. A recente história social e económica, em particular depois das crises económicas de 2007 e 2008, seguida da intervenção reguladora dos governos, veio mostrar tanto a ilusão da perfeição da invisibilidade da mão do mercado (laissez faire) como a imperfeição da excessiva regulação do Estado.
A expressão laissez faire, mais conhecida e usada do que outras quase sinónimas como laissez aller, laissez passer, significam literal e respectivamente “deixar fazer”, “deixar ir”, “deixar passar”. A subida ao poder de Margaret Thatcher (a dama de ferro), como Primeira-Ministra da Inglaterra, em 1979, em representação do Partido Conservador, e de Ronald Reagan como Presidente dos Estados Unidos da América, em 1980, em representação do Partido Republicano, dois promotores da ideologia neoliberal do mercado livre e da mão invisível, popularizou os programas de reformas macroeconómicas e financeiras com vista a promoção da privatização de bens e serviços públicos sociais como a educação, a saúde e até a defesa.
Em Moçambique, as reformas macroeconómicas foram precedidas de reformas políticas profundas com a aprovação de uma nova Constituição da República, em 1990. Com a morte de Samora Machel, foi a enterrar também o utópico projecto do experimento socialista de sociedade que abordamos no decénio anterior. O que alguns dos nossos pensadores, como Severino Ngoenha e José Castiano, referem como a Segunda República, nasce no regulado do segundo Presidente de Moçambique, Joaquim Alberto Chissano. Cognominado o pai do ‘deixa-andar’, ou ‘deixa-fazer’, Chissano e seu Governo representam, simbolicamente, o período do laissez faire da história política, social e económica do país.
O laissez faire no ensino superior
A reforma económica e financeira conhecida como Programa de Reabilitação Económica (PRE) e Social (PRES), ainda que iniciados após a negociada adesão do país ao financiamento e disciplinarização fiscal pelas instituições de Bretton Woods, Banco Mundial (BM) e Fundo Monetário Internacional (FMI), em meados de 1980, ganharam corpo após os acordos de paz que puseram fim à Guerra Civil dos 16 anos entre o Governo da FRELIMO e a RENAMO, em 1992, e a realização das primeiras eleições gerais multipartidárias, em 1994.
No ensino superior, a implementação da primeira Lei 1/93 veio abrir espaço para o surgimento das primeiras iniciativas de provisão da educação superior por entidades não públicas. Assim, podemos falar de diferentes fases, estágios, ondas, ou até gerações de instituições de ensino superior (IES) em Moçambique.
A origem das primeiras IES privadas
A primeira geração de IES, como referimos, gerou apenas uma instituição, os Estudos Gerais e Universitários de Moçambique – EGUM (1962), ainda durante o período colonial, mais tarde elevada ao estatuto de universidade e renomeada Universidade de Lourenço Marques (ULM) em 1968. Após a independência do país, a ULM foi transformada em Universidade Eduardo Mondlane (UEM) em 1976. A segunda geração de IES surge apenas nos anos de 1985 e de 1986, com a criação respectivamente do Instituto Superior Pedagógico (1985), actual Universidade Pedagógica, e o Instituto Superior de Relações Internacionais (1986), actual Universidade Joaquim Chissano. A terceira geração introduz, pela primeira vez, instituições de ensino superior privadas. Este texto aborda as IES até a terceira geração, sendo que as subsequentes irão ser abordadas nos próximos decénios. As primeiras entidades particulares a criarem IES privadas incluem aquelas de natureza secular empresarial e as de natureza religiosa, todas se propondo a prestar serviço público.
A actual Universidade Politécnica (A Politécnica) foi a primeira instituição de ensino superior privada e secular a entrar em funcionamento em Moçambique. Inicialmente designada Instituto Superior Politécnico e Universitário (ISPU), foi criada através do Decreto n.º 44/95, de 13 de Setembro. No entanto, o início do seu funcionamento deu-se apenas no ano académico de 1996/97 quando foi autorizada através da Resolução n.º 16/96, de 6 de Agosto.
No mesmo período, a SOPREL – Sociedade Promotora de Ensino e Serviços Limitada – fundou o Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique (ISCTEM), aprovado pelo Decreto n.º 46/96, de 5 de Novembro. O Instituto Superior de Transportes e Comunicações (ISUTC) foi instituído pela Transcom, Sociedade Anônima. A sua criação foi aprovada pelo Decreto n.º 32/99, de 1 de Junho de 1999, e a autorização de entrada em funcionamento pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33/99, de 1 de Novembro de 1999. Iniciou com as Licenciaturas no ano lectivo 2000-01, precedido de um Semestre Zero no início de 2000. Estas são as primeiras IES privadas que surgiram no país, particularmente tendo promotores de cariz privado-empresarial.
As primeiras IES de cariz religioso
A Igreja Católica de Moçambique, detentora de um património de infra-estruturas sociais considerável, parte da qual nacionalizada a 24 de Julho de 1976, negociou a recuperação do seu património que reverteu a favor do estabelecimento da Universidade Católica de Moçambique (UCM), em 1995, na província de Sofala. Este marco teve um significado simbólico assinalável, pelo facto de a UCM ter levado o ensino superior privado para fora da capital do país pela primeira vez na história, especialmente através de uma entidade privada.
Consta que a ideia de criação da UCM surgiu com Dom Jaime Pedro Gonçalves, Arcebispo da Beira. Dom Jaime e outros membros distintos da Cidade da Beira, tal como o antigo governador de Sofala, Francisco de Assis Masquil, propuseram a criação de uma universidade com enfoque nas questões da promoção da paz e reconciliação nacional.
Assim, a UCM foi fundada oficialmente em 1995 como uma instituição de ensino superior privada através do Decreto n.º 43/95, de 14 de Setembro. A UCM, portanto, é uma instituição da Conferência Episcopal de Moçambique (CEM), com sede na cidade da Beira, província de Sofala. A UCM, assim como as demais IES, depois se expandiu através de delegações provinciais. Em Agosto de 1996, a UCM abriu uma Faculdade de Economia e Gestão (FEG), na Beira, e uma Faculdade de Direito (FADIR), em Nampula. Subsequentemente, criou a Faculdade de Ciências de Educação, actualmente Faculdade de Educação e Comunicação (FEC) em Nampula (1998), a Faculdade de Agricultura (FAGRI) em Cuamba (1999), a Faculdade de Medicina, actualmente Faculdade de Ciências de Saúde (FCS), na Beira (2000), a Faculdade de Gestão de Turismo e Informática (FGTI) em Pemba (2002), o Centro de Ensino à Distância na Beira (2003) e a Faculdade de Engenharia (FENG), a mais recente, em Chimoio, no ano de 2009. A UCM abriu, ainda, três delegações: uma em Tete (2008), outra em Quelimane (2009) e a terceira, de Informática, na Beira (2010).
No Decénio 1993-2003, juntaram-se à família das IES também a Universidade Mussa Bin-Bique (UMB) fundada em 1998. Se as autoridades eclesiásticas cristãs viram na criação da UCM a materialização da ideia de inclusão e expansão do ensino superior para além da capital do país, as autoridades islâmicas, predominantemente no Norte do país, juntaram-se ao movimento criando a Universidade Mussa Bin Bique, abreviadamente designada por UMB. A UMB estabeleceu-se como uma instituição privada de ensino superior criada pelo Centro de Formação Islâmica, ao abrigo do Decreto n.º 13/98, de 17 de Março, tendo a sua sede na cidade de Nampula.
O primeiro passo estava dado para o início da expansão do ensino superior privado no país. O contexto regulatório do laissez-faire permitia que, com algum esforço, se pudesse criar uma IES. No entanto, ainda havia alguma timidez por parte das entidades promotoras, mas este cenário prevaleceu apenas no decénio em análise.
Neste sentido, podemos falar tanto de uma primeira geração de IES privadas seguida de novas fases onde a pujança para a criação de outras aumentou, como também das exigências, em termos de requisitos, à medida que as alegações de baixa qualidade entravam para a ordem do discurso.
Com o surgimento das IES privadas, o subsistema do ensino superior começou um processo de diversificação e de diferenciação. Destaca-se aqui a diversificação das ofertas de cursos e programas e a diferenciação em termos do tipo de IES, não somente entre públicas e privadas mas também de carácter, estas últimas promovidas por entidades religiosas e por sociedades empresariais. Timidamente, começou a surgir o debate sobre a intenção lucrativa ou não-lucrativa das entidades promotoras, dado que se percebia que, nalguns casos, o investimento para a criação das IES não permitia o provimento de condições mínimas para as actividades do ensino superior.
Com efeito, parte significativa da informação sobre as IES neste texto foi obtida com recurso às suas páginas da Internet (vulgo website). É notório como algumas IES com mais de 20 anos de existência, algumas oferecendo formações até ao nível do doutoramento e outras, inclusivamente, em áreas relacionadas com a informática, não dispõem de uma página web funcional, para falar do mínimo. A facilidade de se criar uma IES levou a alguma banalização do ensino superior, sem deixar de referir que nas IES públicas também surgia e se consolidava a expansão por via da abertura de delegações e da abertura do regime pós-laboral. As consequências da expansão desenfreada com um pendor para a comodificação, comoditização e tratamento da educação como um produto comercializável serão escrutinadas nos próximos textos desta série.
O relatório da comissão Comiche
O relatório da Comissão Comiche da revisão do ensino superior em Moçambique deve ser um dos documentos mais referenciados, mas pouco difundido ou até mesmo indisponível ao público. Um de nós já entrevistou vários actores-chave e personalidades que fizeram parte dos trabalhos da comissão e que o citam como um documento fundamental para entender a reforma do ensino superior, particularmente no decénio após a virada do milénio. No entanto, ninguém tem o documento disponível.
Entre 1997/8, a comissão foi constituída e encarregada pelo Presidente Joaquim Chissano para repensar o ensino superior e o papel dos diferentes actores públicos e privados face ao crescente discurso e a preocupação com a necessidade da expansão sem comprometer a qualidade.
Consta que é das recomendações da Comissão que o novo Governo saído das eleições gerais de 1999 fundamentou a criação do primeiro Ministério para a Coordenação do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia (MESCT), cuja pasta foi assumida pela académica Lídia Brito, saída da Vice-Reitoria da UEM. Foi sob tutela do MESCT que se preparou o primeiro Plano Estratégico do Ensino Superior 2000-2010, no qual os pressupostos da expansão, diversificação e diferenciação, bem como dos mecanismos de garantia de qualidade, foram lançados.
O trabalho da criação de um quadro legislativo, normativo e de regulação, traduzido num plano estratégico e operacional de desenvolvimento do sector, conduziu a necessidade de revisão da primeira Lei do Ensino Superior 1/93, de 24 de Junho, e a aprovação de uma nova Lei, a 5/2003, de 21 de Janeiro. Os instrumentos regulatórios da nova lei abriram espaço para o surgimento da terceira geração de IES e uma nova onda de expansão, diversificação e diferenciação do sistema que iremos abordar no decénio 2003-2013.
(Continua*)
[1] Sociólogo, Professor de Estudos de Ensino Superior
[2] Reitor da Universidade Pedagógica de Moçambique
Terapia surda
Doroteia, nome grego, que significa dádiva de Deus, decidiu quebrar os seus silêncios e se libertar de suas amarras, curando as suas próprias feridas e traumas. Ela escreve o seu primeiro livro e, com base em factos reiais, pretende dizer à sociedade e ao mundo que, muitas vezes, as famílias se enchem de cuidados para que nada de mal aconteça, aos seus filhos, fora de casa, porém, não têm os mesmos cuidados, dentro de casa, e nem sequer passa pelas suas cabeças que o perigo pode estar tão iminente.
Lipondo ou Terapia da Fala é uma narrativa que nos conduz para o pior que rapazes e raparigas podem, alguma vez, passar na infância. Entender a profundidade e o âmago destas revelações equivalem a compreender a condição humana e as formas de vida que o ser humano impõe a si próprio, para coexistir e sobreviver, ou se autodestruir. São os caminhos perversos que mais do que tornar a peregrinação um momento aprazível, fazem dela uma outra forma de suprir a existência e felicidade do próprio ser humano. Destituir o essencial da nossa condição significa iniciar outra guerra tão mortífera como a guerra das armas.
Estes textos navegam entre diferentes géneros literários. Algumas vezes mais poéticos, outras agrestes e até ficcionais. São como diria Hannah Arendt, a súmula da própria condição humana ou da perversidade dessa mesma humanidade. Sugiro, então, uma leitura cuidada e com tempo, um momento disruptivo e de desassossego. Uma caminhada sofrida e mística. Estamos diante desse buracão, que nos persuade a revisitar temática sobejamente debatida, com estatísticas perturbadoras, porém, cujas soluções continuam tão utópicas, como imprevisíveis e, convenhamos, incompreensíveis.
Estas são as histórias de várias vítimas da violação de direitos humanos, de direitos da criança e do direito de viver um mundo de sonhos e aspirações. Ela descreve, jamais livre, que jaz como menina de saia escocesa vermelha, uma menina morta e sem voz. O funeral profanado de uma infância, a esperança esmiuçada da eternidade dos seus sonhos. Aqui jaz uma inocência; e aqui jaz uma existência.
Por vezes, e em certos momentos, a vida nos conduz para os seus próprios fins e destinos. As marcas de um sofrimento que impelem uma relação psicológica distorcida entre o corpo e a mente. Tudo vira disfuncional. Com a autora, essa sensação de não pertença aconteceu. Sentiu, ao longo de anos, um misticismo destorcido da carne distanciada da mente e do seu intelecto. O corpo deixou de ser, somente, o fenótipo, o visível, mas, também, a parte sensorial e mais notável. Passou, uma vez tatuado pelos traumas, à matéria, no seu estado físico material, como provam todas as lições metafísicas, onde o todo se desencontra das suas partes, se descomunga, atravessando as linhas do imaginário e do inalcançável. Só a força de vontade e o desejo de superação podem falar mais alto.
Eu sou Doroteia ou Dorinha ou, se quisermos, uma mulher de lutas. Pouco mais do que dádiva de Deus, também, posso ser luz; a fonte de energia suprema que nos liberta de todas as trevas, escreve a autora. É doloroso e repugnante reler estas descrições porque se tornaram senso comum, numa sociedade que se debate com gravidez precoce, casamentos prematuros, com mães que são crianças. Um pouco por todo o país, estas verdades morrem ao sabor do vento e quase deixam de indignar.
Relendo Lipondo, e essa apologia ao buraco, um buraco invertido, porque passamos a conhecer o seu interior, sem antes nos atinarmos à superfície, nos recordamos, também, de George Orwell que versou, nas suas obras sobre a paz, a liberdade, a escravidão, sobre a ignorância e a força. Por conseguinte, ele afirmava, que a consolidação do silêncio se comparava ao exercício do direito a voz desse mesmo silêncio. Exercitar o silêncio exigia coragem, da mesma forma que exigia a intuição para a inacção. Libertar a voz era uma terapia, não completa, mas a possível.
Doroteia toca nos extremos, aqueles paradoxos que levam as verdades para o túmulo. Dizia, no começo, que recomendaria uma leitura invertida. Os valores do bom senso também se inverteram. Forçar as crianças, mesmo antes da sua puberdade, a uma relação sexual repetida, tem mais do que perverso, tem maldade e indignação. Desumano e malicioso. Pior quando acontece no tecto da mesma família que julga estar a conviver e a educar. O resto da narrativa suaviza os impactos. Factos consumados e essa busca pela superação e compaixão. Reter aquilo que mais nos pertence, o nosso corpo.
O Prefácio deste livro, que tem a missão de orientar o sentido das nossas leituras, fala numa descrição magnífica, mas, igualmente, numa matéria que faz chorar do princípio ao fim, não só pelo inaceitável, mas, igualmente, pelo facto de serem situações recorrentes e que alcançam milhares de Doroteias, naquilo que elas têm de mais sagrado, que é o seu corpo.
O abuso sexual de menores e, igualmente, de qualquer outra mulher, de qualquer idade, continua um crime repugnável, que iliba o criminoso e pune, duplamente, as suas vítimas. Estes actos infames e violentos e, muitas vezes, desproporcionais, não geram, apenas, a dor e a revolta, mas, enterram e sepultam a mulher e seus sonhos. Eles vão acontecendo a cada segundo, todas as horas, todas as semanas e, muitas vezes, nos mesmos locais.
O nosso país vive esta encruzilhada. O mundo também. São as histórias de terror que ninguém preza escutar. As aporias que, jamais, nos esforçamos a resolver, e os mantos do pior com que o ser humano tem de conviver, a bom rigor, os dissensos com os quais convivemos e, também, em silêncio, nós os homens, ou nós os pseudo-homens.
Quebrar as barreiras do silêncio, como diz Doroteia, tem a missão de tornar em inspiração para outros e para outras. Esse é o sinal de luz, como refere Dorinha.
É necessário que todas as Doras de Moçambique se inspirem na jornada do autoconhecimento. Estas mulheres têm que provar que homem nenhum tem poder sobre elas e nós, que escutamos estas declarações, destas vítimas da violência, precisaremos de entender que só exercitando o poder de escutar, de ajudar e de ser solidário, fará de nós próprios, pessoas mais corajosas, destemidas, solidárias e fraternas.
Precisamos de acreditar que temos, todos, um propósito, pois as histórias de nossas vidas começam muito antes de qualquer escrita ou de qualquer leitura. O sinal da luz está sempre presente nas planícies, nas montanhas, na infinita superfície do mar, no interior de qualquer lipondo. Que esta leitura nos ajude a transformar uma terapia surda em acções que nos libertem e que nos ajudem a falar, sem medos, sem receios e em busca de uma cura que tenha o sentido de todos os sons e de todas as cores das canções. Quando as mulheres vítimas de violência sexual poderem falar, elas serão e estarão empoderando todas as mulheres que vieram antes delas próprias, e até, daquelas que ainda não passaram por esse trauma.
[1975/6 (1986) - 1990/3]
Patrício Langa[1] e Jorge Ferrão[2]
Este é o segundo de uma série artigos que dedicamos à análise crítica e social do percurso sócio-histórico, institucional, ideológico e filosófico do ensino superior em Moçambique e Angola, por ocasião das celebrações das seis décadas desde a instituição formal deste tipo de ensino em Agosto de 1962.
Assim, em forma de decenário, analisámos os processos inerentes à génese e estruturação do ensino superior década a década, com maior enfoque para a realidade moçambicana.
No texto anterior, encerramos a análise do período 1962-1975/6, sugerindo que o estabelecimento do ensino superior foi paradoxal na medida em que visava manter o status quo ideológico do regime colonial.[3]
Por outras palavras, a universidade instalada em Moçambique e Angola, entre 1962 e 1974, não só era reflexo da sociedade colonial Portuguesa como também da ideia de uma universidade europeia exclusivamente dedicada à reprodução da elite intelectual e académica para a perpetuação de uma sociedade desigual de cariz colonial.
Em Portugal, a Universidade de Coimbra era o modelo de universidade não só para aquele país, mas também para a Europa. Coimbra era, para a elite Portuguesa, o que Oxford e Cambridge eram para a elite colonial Britânica. Essas universidades não eram, e em alguns casos continuam não sendo, para as massas ou, como se diz em Moçambique, para o povo.
Assim, a transposição da universidade da metrópole para a colónia, metaforicamente designada de província ultramarina de Portugal nos anos 1960, seguiu o mesmo princípio ideológico ainda que com característica sui generis. A universidade na colónia também não era para o povo, muito menos para o povo indígena, no vocabulário colonial, mas para a elite colonial branca da eufemística província ultramarina, reproduzindo assim a estratificação social de carácter ideológico, político, económico, cultural e racial de Portugal.
Quando os Estudos Gerais Universitários de Moçambique (EGUM) foram estabelecidos pelas autoridades coloniais, em referência ao antigo termo latino-medieval para uma universidade, Studium Generale, a ideia na origem não privilegiava cursos de orientação tecnológica. No entanto, a transposição da universidade para a colónia enfatiza precisamente a necessidade dos cursos de matriz tecnológica com raríssimas excepções para os cursos de cariz pedagógico.
A universidade não visava a reprodução duma massa crítica pensante capaz de questionar o status quo. Pelo contrário, visava a reprodução de tecnocratas para a materialização da diferenciação social e da divisão social do trabalho na sociedade colonial.
Os cursos da EGUM eram introdutórios e, assim que os alunos começavam a especializar-se em uma determinada disciplina, deviam seguir para a metrópole para completarem os seus estudos. Após cinco anos, em 1968, a EGUM foi elevada ao estatuto de universidade e institucionalizada com a denominação de Universidade de Lourenço Marques (ULM), passando a conferir graus académicos sem depender, necessariamente, da validação da metrópole.
A independência e a nova ordem política
A chegada da independência, a 25 Junho de 1975, impôs uma nova ordem político-ideológica e, com esta, uma outra concepção de sociedade e da função do ensino superior na sociedade. A universidade passou a integrar o projecto de construção de uma nova nação e sociedade independente, livre da discriminação com base em ideologias racistas e sexistas, tendo agora como principal função a promoção do desenvolvimento.
Neste artigo, dedicamos especial atenção à segunda década cobrindo o período de 1975/6 a 1990/3. Este período corresponde ao início do novo Estado independente, marcado ideologicamente pela tentativa de implantação de uma República Popular e de uma sociedade de cariz político-ideológica e económica socialista.
Esta nova realidade desenvolvia-se num contexto dominado por uma ordem social global de clivagem política e ideológica devido à Guerra Fria, com dois blocos dominados um dominado pelos Estados Unidos da América (EUA) e o outro pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que se confrontavam pela expansão do seu modelo de desenvolvimento social, político e económico.
O bloco liderado pelos EUA, também designado como Ocidente, seguia e expandia o modelo da democracia liberal, multipartidária, bem como o princípio da economia do mercado como modo de produção económico e social. Por seu turno, o modelo Soviético defendia a via da economia de planificação assente num Estado centralizado e com um sistema político predominantemente monopartidário.
A década em análise tem como característica estrutural esta clivagem global e Moçambique, ao ascender à independência, adopta a via Soviética da economia de Estado centralizada e planificada, bem como um sistema político monopartidário.
Esta via conduziu o país até à derrocada do experimento socialista sinalizado pela adopção da segunda constituição de 1990. A nova constituição altera o modelo ideológico do socialismo para o liberalismo, assente numa economia de mercado e num regime de democracia multipartidária. As mudanças no país continuam consistentes com a alteração da ordem social e política mundial na sequência do fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a queda do Muro de Berlim, que dividia a Alemanha Oriental e soviética, – para onde foram estudar e trabalhar muitos de nossos compatriotas – e a Alemanha Ocidental, de orientação liberal.
Ao concentrarmos a análise em cada década, pretendemos amplificar alguns dos acontecimentos e factos marcantes que consideramos terem concorrido para definição do carácter do ensino superior em Moçambique, até ao momento, quando se celebra o sexagenário desta instituição social. Um reparo metodológico importante é necessário sempre que se tenta demarcar eventos históricos com recortes cronológicos.
O ano de 1975 marca o corte formal com o regime colonial, ainda que a herança cultural e institucional, como a língua oficial, entre outras formas imateriais de património cultural e institucional, transcendam limites cronológicos.
O recorte do fim do segundo decénio também é difícil se atendermos ao facto dos acontecimentos de relevo não respeitarem fronteiras temporais. Em princípio, dez anos após 1975 seria o ano de 1985. No entanto, um dos acontecimentos mais relevantes para o ensino superior neste período, e que merece o nosso destaque, seria o da criação do Instituto Superior Pedagógico (ISP), como a segunda instituição de ensino superior no país, e a primeira após a independência. Logo de seguida, em 1986, nasce a terceira instituição de ensino superior, o Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI).
No entanto, 1976 constitui igualmente um marco histórico por ser o ano no qual, a 1 de Maio, a única instituição do ensino superior foi atribuída o nome de Eduardo Mondlane, em homenagem feita pelo Presidente da República Samora Machel ao fundador da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Machel veio a falecer tragicamente em 1986.
A morte de Machel também simboliza um marco histórico, o da derrocada do experimento socialista, que vem a ser institucionalizado com a adopção da Constituição da República de 1990, inaugurando uma nova ordem política, económica e social de cariz democrática e liberal. Portanto, 1990 como marco histórico-cronológico já não representa um decénio, mas uma quinzena.
Para o ensino superior, em particular, o ano de 1993 simboliza a adopção, pela primeira vez, de uma Lei de Ensino Superior que acaba com o monopólio do Estado como único provedor e liberaliza a oferta de bens e serviços de educação superior através da introdução de operadores privados na lógica da demanda e oferta num mercado do ensino superior no qual o Estado passa a acumular as funções de provedor e regulador.
A universidade pós-colonial
A década em análise aborda o ensino superior numa sociedade em transição para a constituição de um país soberano. Com a soberania surge a possibilidade de criação ou de transformação das instituições consistentes com a nova visão de um país livre, igualitário e cujo substrato ideológico assentaria num entendimento específico de um Marxismo-Leninismo instituído a partir do III Congresso da FRELIMO (então ainda um movimento de libertação).
Neste III Congresso, o movimento libertador transforma-se em Partido Político da Vanguarda Socialista e se assume como o único e legítimo representante do Povo. Neste sentido, todas as instituições do Estado deveriam conformar-se com as directivas do Partido como Guia do Povo.
A única universidade existente até então não foi excepção e teve de se conformar com as directivas do Partido como guia omnisciente do Estado, do Povo e de suas instituições. A visão de uma sociedade e das suas instituições guiadas por uma Parte do Todo, que se entendia como legítimo representante do Todo, de antemão, chocava com alguns dos princípios fundacionais universais da ideia da universidade: a autonomia institucional e a liberdade académica.
FRELIMO: guia da universidade
A ideia de autonomia institucional das universidades e a liberdade académica dos seus profissionais estão no âmago da condição de possibilidade de uma universidade moderna enquanto instituição social global.
No geral, o conceito de autonomia universitária descreve e examina as relações de governação entre as autoridades do Estado (Governos, mas também eclesiásticas) e a universidade tanto ao nível de todo o sistema de gestão do ensino superior como ao nível das instituições, como também ao nível da liberdade individual dos académicos de ensinar, pesquisar e comunicar com a sociedade de acordo com os preceitos éticos e deontológicos emanados da própria universidade.
A ideia de autonomia não só não é inteiramente transposta da universidade da metrópole para a universidade do ultramar como é imediatamente questionada na nova universidade pós-colonial.
A visão da nova administração da universidade, liderada pelo Reitor Fernando dos Reis Ganhão, o primeiro após a independência, surge bem expressa numa entrevista concedida à um jornal da altura:
“O conceito de universidade autónoma e independente é impossível. Isto está intimamente ligado a um sistema socioeconómico e político que não pode funcionar num país que está a construir uma via revolucionária. E não se pode permitir que uma determinada organização absorva verbas extraordinárias e esteja a dar a sua orientação independente”.[4]
O excerto acima sugere que a universidade pós-colonial em Moçambique ressurge confrontada com um desafio existencial na medida em que um dos seus princípios fundacionais consagrados era questionado pelo partido. Por um lado, a autonomia universitária, geralmente entendida como condição sine qua non para que uma instituição reclame à si esse título, era negada à universidade pós-colonial. Por outro lado, a nova universidade renasce sob a égide da gesta libertária, da autodeterminação e para servir as necessidades do ‘Povo’, como articula o Reitor Ganhão:
“E não se pode permitir que uma determinada organização absorva verbas extraordinárias e esteja a dar a sua orientação independente. Esta orientação tem de ser dirigida pelas necessidades do povo e só ela estando realmente dentro desse processo impulsionado pelas massas populares através do partido pode participar no processo revolucionário’’.
Ao lermos estes excertos do pensamento do período revolucionário é importante colocar o texto no contexto e evitar uma análise anacrónica e normativa. Em 2022, aos celebrarmos 60 anos do Ensino Superior e 47 da independência nacional, pode-se ficar tentado a julgar o pensamento de outrora como um erro óbvio. Os termos da análise social não se confundem com os do julgamento.
O que nos parece facto histórico relevante é que a euforia da independência, no contexto ideológico global já descrito, não permitiu que se pudesse conceber uma universidade sob égide de princípios universais de independência e autonomia da universidade como um tipo de instituição. Esse é facto histórico e, não necessariamente, um contra-senso.
Na leitura da FRELIMO, traduzida nas palavras do Reitor Ganhão, parece que existia um paradoxo entre os princípios da revolução socialista e aqueles da independência e autonomia universitária, como se pode ler no excerto que se segue:
“Permitir que uma Universidade de isole, se enclaustre, fique anquilosada, em determinados princípios para defender determinadas tradições de pseudo-independência não creio que isso seja compatível com a via revolucionária’’.
Parece paradoxal que os receios de uma universidade autónoma expressos pelo Reitor em 1975, até certo ponto, ainda se mantêm, não obstante as mudanças ocorridas no decurso de quase cinco décadas. Ainda que as universidades, em particular as públicas, tenham formalmente em seus estatutos a autonomia como um princípio fundamental, a materialidade da experiência sugere limites à autonomia que carecem de análises mais profundas do modus operandi, bem como do grau e consequências do seu cerceamento.
Do ensino superior da FRELIMO à FRELIMO do ensino superior
A FRELIMO celebra este ano o seu 60º aniversário, data que coincide com a da celebração da independência nacional a 25 de Junho. Moçambique tem na FRELIMO o seu ADN. A análise do pensamento da FRELIMO, e de seus membros, enquanto movimento e indivíduos movidos pela gesta libertária, é fundamental para compreender a formação social das instituições do país.
O que se tornou ensino superior nos primórdios da independência é, grosso modo, reflexo da (di)visão do mundo da FRELIMO. É legítimo, por isso, conceber o ensino superior, nesta fase, como sendo o da FRELIMO. O produto desse ensino superior, por seu turno, gerou não apenas uma nova FRELIMO, isto é, aquela que resultou da formação no ensino superior, como também uma nova sociedade moldada pelas políticas públicas e acção governativa dos diferentes governos da FRELIMO.
No período em análise, o Governo da FRELIMO foi, maioritariamente, liderado pelo seu segundo Presidente, Samora Machel, desde 1975 até sua morte a 19 de Outubro de 1986, num fatídico acidente de aviação nas colinas de Mbuzini, na vizinha África do Sul. Graça Machel, esposa de Samora Machel, foi quem dirigiu, neste período, o Ministério da Educação no qual as políticas públicas eram formuladas.
A Universidade Eduardo Mondlane (UEM), até então única instituição do ensino superior, a qual se vieram juntar o ISP, em 1985, e o ISRI, em 1986, era tutelada pelo Ministério da Educação de onde emanavam as directivas para a governação da instituição.
O ensino superior da FRELIMO, podemos concluir, foi produzido nos primeiros anos da independência quando a FRELIMO era o único guia da universidade e do país. Essa FRELIMO produziu os primeiros quadros nacionais através das suas políticas de formação ao nível nacional e internacional, por via dos acordos de cooperação que viram vários compatriotas seguirem para formação no exterior, em particular nos países do leste de orientação socialista.
Desde a ‘sacrificada’ geração 8 de Março – cujo perfil académico e profissional foi directamente afectado pelas políticas de afectação nas áreas de estudo e de trabalho consideradas prioritárias pelo governo, subalternizando os sonhos e escolhas individuais – até à adopção da Constituição de 1990, podemos falar de um ensino superior da FRELIMO. A FRELIMO era o Guia do Povo.
A FRELIMO do Ensino Superior surge, a posterior, do impacto das ideias e acções dos quadros que a FRELIMO formou, sobre a própria FRELIMO como organização, mas também sobre o sistema do ensino superior e da sociedade no geral. As duas faces, a do ensino superior da FRELIMO e a Frelimo do ensino superior, são objectos de estudo importantes para compreendermos a relação entre o ensino superior e a sociedade moçambicana passadas seis décadas.
Afro-moçambicanizar a universidade
Os novos governos africanos herdaram instituições coloniais que não tinham a confiança do público. Essas instituições eram vistas como instrumentos de opressão. Com a independência, as instituições de ensino superior, nos países africanos, procuraram reformar-se de modo a responder ao que entendiam ser a nova missão no contexto de um país soberano.
Após a independência, a universidade além da função da formação de quadros foi concebida como instrumento para a construção de uma nova nação moldando nos jovens de todo o país uma nova identidade nacional e um processo de africanização da universidade até então concebida como instrumento de dominação colonial europeia.
No caso de Moçambique, a política do ensino superior da FRELIMO visava a moçambicanização da universidade, começando pela atribuição do nome do fundador da FRELIMO considerado o arquitecto da unidade nacional dos moçambicanos, Eduardo Chivambo Mondlane.
Como outras universidades africanas, o principal papel da UEM era o de contribuir para a construção da nação moçambicana através da formação de quadros nas diversas áreas de saber para os diversos sectores de actividade, particularmente no aparelho do Estado.
Moçambicanizar a universidade, portanto, significava não somente alterar a sua denominação, visão e missão, mas também a sua função social e, como diria Severino Ngoenha, nosso filósofo-mor, o seu estatuto axiológico. Iniciou um processo de reformas da universidade a todos os níveis, sobretudo a nível organizacional, funcional, curricular e cultural, de modo a continuar com a tarefa de forjar uma nova identidade nacional.
Todo este empreendimento iria requer da universidade e do governo um esforço gigantesco em termos de recursos materiais, financeiros e de pessoal qualificado. Tudo isto numa altura em que o ensino superior em África entrava para uma das suas maiores crises existenciais, como iremos abordar a seguir.
A crise dos anos 1980s
Em 1986, o Banco Mundial reuniu-se, em Harare, com Reitores de universidades africanas. A mensagem era clara, aconselhar aos Reitores que fazia sentido económico encerrar as universidades nos países africanos recém-independentes e delegar a formação dos seus recursos humanos às universidades no ocidente.
Por razões que se pode descortinar, uma vez que tal medida tinha implicações directas para os próprios Reitores, que deixariam seus cargos pomposos, estes prontamente se recusaram a acatar a recomendação. Incapaz de convencer aos Reitores e governos de seus países a encerrar as universidades, o Banco Mundial mudou de táctica e introduziu uma nova estratégia de passar a condicionar a ‘ajuda’ (na verdade um presente envenenado) às reformas do sector. A receita passou a ser a liberalização, a privatização e até a mercantilização do ensino superior, com consequências estruturais profundas até à actualidade.
Pedro Guiliche, um promissor cientista político moçambicano, lançou, no âmbito das celebrações dos 60 anos do ensino superior, uma obra na qual disserta sobre a intervenção do Banco Mundial no ensino superior em Moçambique e as consequências perversas das suas políticas no sector. O valor da obra de Guiliche, mais do que criticar as políticas do Banco Mundial como quase todos o fazem, reside no contributo que faz ao campo de estudos do ensino superior no país, por nós fundado e, por isso, ainda numa fase bastante incipiente. Guiliche analisa as consequências desmobilizadoras da acção endógena da política pública e a subordinação a uma agenda externa com carácter de determinismo tecnocrático que despolitiza a acção dos actores locais e torna o sistema um objecto de intervenção externa para correcção de patologias diagnosticadas pelo próprio jargão conceptual do Banco Mundial.
Mergulhados numa crise económica sem precedentes, a seguir à crise petrolífera dos anos 1970s e 1980, os países africanos sucumbiram aos ditames do Banco Mundial e abriram o sistema do ensino superior ao jogo do mercado guiado por princípios de um neoliberalismo de Margaret Thatcher e Ronald Reagan sem precedentes, que vêem na educação um bem-privado, em termos de investimento e benefícios, e uma mercadoria passível de ser regulada pelo princípio da mão invisível e pelas leis da procura e oferta do mercado.
O fim do experimento socialista
O fim do experimento socialista do ensino superior em Moçambique é, legalmente, marcado pela aprovação da Lei n.º 6/92, de 6 de Maio, que procedeu ao reajustamento do quadro geral do sistema educativo e aprovou os principais objectivos e estrutura do Sistema Nacional de Educação na República de Moçambique. A Lei n.º 1/93, de 24 de Junho, regula a actividade do ensino superior na República de Moçambique. Foi a partir destes dois instrumentos legais que se criou o espaço para o surgimento de entidades privadas provedoras de serviços e bens educacionais ao nível do ensino superior que serão objecto do próximo texto, combinando o período 1993-2003.
(Série: Continua)
[1] Sociólogo, Professor de Estudos de Ensino Superior
[2] Pesquisador Socioambiental, Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo
[3] Vide: https://cartamz.com/index.php/blogs/item/9719-o-decenario-do-ensino-superior-mocambicano-1962-1972-5-6-da-genese-ideologica-do-status-quo
[4] Entrevista de Areosa Pena com Fernando Ganhão, 17 Janeiro de 1975, Jornal Kapital. Disponível Online: https://www.mozambiquehistory.net/education/higher_education/19750117_frelimo_sera_guia_da_universidade.pdf