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sexta-feira, 24 abril 2020 07:07

Grande Reportagem - Magude e a caça furtiva: estórias de gente que tanto se endinheirou como desgraçou suas famílias

O Distrito de Magude, na Província de Maputo, é famoso por ser um dos corredores onde actuam grupos de caça furtiva. Esta actividade ilegal realiza-se particularmente ao longo do Parque Nacional do Limpopo, embora nos últimos tempos, oficialmente, as autoridades digam que a situação abrandou substancialmente.

 

Um trabalho investigativo desenvolvido pela “Carta”, entre finais de Fevereiro e princípios de Março do presente ano, constatou que as marcas da “furtivagem” em Magude prevalecerão por muito tempo ainda.

 

Entre os postos administrativos visitados pela nossa reportagem, está Mapulanguene situado a mais de 90 km da vila sede de Magude, e Pangane a 50 km. Nestes locais, onde os reflexos da caça furtiva são assustadores, é normal verem-se sumptuosas mansões que contradizem com o nível de pobreza da maioria da população.

 

Já na vila de Magude, concretamente nos bairros de Ricatlane e Mahanja 1, ouvimos histórias igualmente impressionantes envolvendo caçadores furtivos (entre sobreviventes e mortos). A cada cinco casas, três têm alguma marca ligada a essa actividade ilegal, com famílias que perderam ou têm detidos um, dois ou até mais dos seus membros devido à caça furtiva do rinoceronte, vulgo xibedjane.

 

“Carta” ouviu José Nguane (nome fictício), um jovem de 35 anos de idade, natural de Mapulanguene, hoje residente no luxuoso bairro de Mahanja 1, em Magude. Ele esteve detido na África do Sul, entre 2013 a 2014, por ter sido encontrado no interior do Kruger Park com seus comparsas caçando xibedjane. Hoje funcionário público, Nguane contou à “Carta” os contornos daquela prática que muito dinheiro e riqueza deu aos jovens e senhores do crime em Magude, mas que deixou também muitas famílias na desgraça.

 

“Vim viver para cá depois de fazer a 5ª classe. Estudei aqui da 8ª à 12ª classe. Depois de terminar os estudos voltei para casa, onde a actividade da maioria dos jovens é a caça, não por quererem, mas porque a vida é difícil, agravada pela seca. Não tive outra alternativa senão entrar para esse mundo.


Cedo percebi que esse trabalho rendia muito dinheiro. A minha mãe não aceitava, pois sabia dos perigos que se correm, mas eu insisti e ela cedeu. Um dia ela disse, está bom e, daí, entrei uma vez”.

 

bem

 

 

“Carta”: Quantas vezes entrou no Parque para caçar e não conseguiu?

 

José Nguane: Entrei três vezes sem conseguir nada.

 

Quantas vezes conseguiu e o que fez com o dinheiro?

 

– A primeira vez que consegui, coloquei o produto à venda. Vi que o dinheiro era muito e decidi investir, pois também estava ciente que este negócio não custa acabar com a vida de alguém. Então, comprei uma motosserra e arranjei três homens para produzir o carvão em Tshikossane, mas o negócio não deu certo e tive de voltar à caça. Fiz sete novas investidas ao Kruger Park, na companhia de um grupo de jovens.

 

À sétima vez acabei sendo apanhado. O que aconteceu foi que, logo que entramos, encontramos um outro grupo a caçar no mesmo raio em que estávamos. Então, logo que os fiscais chegaram e começaram a manipular as armas, em vez de dispararem contra o grupo que estava a atirar, eles atiraram contra nós e, nesta situação, perdemos um jovem do nosso grupo que tinha, na altura, 34 anos de idade, que era o nosso atirador.

                                                                                                                                              

– Qual era o seu papel específico no grupo? Sabemos que existem tarefas para cada um dos três…

 

 – (risos) Ali, a minha a tarefa era carregar a sacola do pão e de coisas para enganar o estômago. A minha tarefa era de carregar os mantimentos para o grupo se alimentar.

 

Eu fui pego num sábado por volta das 10:00 horas e, na segunda-feira, fomos levados para um tribunal sul-africano. Quando questionados, admitimos que havíamos sido apanhados no interior do Kruger. Fomos defendidos por um advogado oficioso, mas acabamos condenados a cinco anos de prisão: quatro anos e sete meses por estar no Kruger Park sem autorização e três meses por estar na África do Sul sem passaporte.

 

– Então não foram condenados por crime pela caça em si?

 

– Crime de caça não houve, uma vez que, aquando da detenção, os fiscais pegaram a arma que levávamos, esquecendo-se que não a deviam pegar sem usar luvas, o que acabou por apagar as digitais da máquina (arma), daí o Tribunal ter anulado esta acusação.

 

– Voltando a aspectos técnico-tácticos das vossas operações: normalmente quanto tempo levavam lá dentro, desde a entrada à saída, até chegarem à zona do abate?



– Isso depende da coragem de cada um. Existem aqueles que levam dois, três dias ou uma semana de forma a acumular cada vez mais o produto. Existem aqueles que acertam e ficam ainda a caçar mais. Depende da coragem de cada um.

 

– Quando voltou a Moçambique foi detido pelas autoridades. Teve alguma acusação?

 

– Não, porque ninguém aqui soube do que se passou. O que eles sabem é que existem jovens que entram lá, por isso, quando somos pegos eles só sabem que existem jovens detidos, mas não sabem quem são exactamente. Mas acredito que se fosse aqui eles me tratariam da mesma maneira: iria ao tribunal e seria condenado e por fim sairia.

 

– Esta realidade da caça furtiva é evidente cá?

 

– Acredito que sim, mas não posso comentar o caso daqui da vila de Magude, porque sou de Mapulanguene. Posso sim dizer que, apesar de tudo, reduziu-se drasticamente. Posso dizer igualmente que reduziu porque perdemos muitos jovens mesmo por causa da caça proibida.

 

– Uma das questões que muito se avança é o papel dos curandeiros nesta actividade. O que tem a dizer acerca disso?

 

– Existem aqueles que vão, mas aquilo ali é só para ter coragem. Mas muita coisa lá depende da fé de cada um. Embora existam aqueles que acreditam em deuses e existem aqueles que acreditam em Deus. Não pode haver diferenças de fé no grupo. Porque não pode existir aquele que vai ao curandeiro e outro que não vai. Tudo deve estar ligado com o grupo.

 

– Quem vos levava para a mata eram os “patrões”?

 

– Os patrões não conhecem a mata. Nem querem conhecer. O que eles sabem é fornecer máquinas (armas), receber o produto e ir vender apenas.

 

– Fala-se de muito dinheiro envolvido após a venda do produto. De quanto se está a falar exactamente?

 

– Isso depende muito do peso, que tanto pode ser 12.5 kg ou 8 kg. Pelo menos em 2016 era assim. Quanto maior for o produto, menor o valor. Ou seja: quando o produto é menor, tem mais valor. Na altura um quilo rondava em 450 mil meticais. Nós nem queríamos saber de onde vinha o dinheiro. A nossa luta era apenas trazer o produto até à vila e o patrão levava e ia vender na Cidade e trazia o valor.

 

– Chegou a conhecer algum desses patrões?

 

– (Risos) não conheci com os meus próprios olhos! Nós só entregávamos o produto a alguém e essa pessoa trazia-nos o dinheiro no mesmo dia, porque a máquina (arma) usada era dele.

 

 

Xibedjane levou meu irmão à morte”

 

Sorte diferente teve Sérgio Filimone Monjovo, nascido em 1982, em Mapulanguene, tendo perdido a vida em 2013 quando partia pela segunda vez para o Parque Nacional de Kruger em busca de mais um troféu.
Segundo Meita Filimone Monjovo, irmã do finado, “foi uma situação que chocou a família, mas que já foi ultrapassada, porque nos fez perceber que, de facto, o crime não compensa”.

 

Meita contou à nossa reportagem que o irmão deixou uma mulher grávida na altura e quatro filhos, sendo que o mais velho tem actualmente 10 anos de idade. Meita Filimone Monjovo explicou ainda que trabalhou na Fazenda de Bravio da Twenty City, onde na altura as pessoas diziam que quem visse peugadas de rinoceronte no Parque e mostrasse aos caçadores furtivos seria recompensado com três mil meticais, mas que ela nunca se meteu no negócio.

 

Meita revelou que, quando perdeu o irmão na África do Sul, tiveram de vender uma cabeça de gado para poder transladar o corpo para Moçambique. Actualmente, a esposa do finado cuida dos menores, enquanto ela (a irmã) se encontra desempregada.

 

 

Bons exemplos

 

Entre vários jovens residentes na Vila de Magude, “Carta” entrevistou Lálio Cossa, jovem empreendedor na área de lavagem de viaturas que, após terminar o ensino secundário, sofreu aliciamento para entrar na caça furtiva, mas devido à sua força de vontade em ter uma “vida justa” não se deixou levar.

 

Lálio Cossa diz que há três anos Magude tinha uma outra imagem “com jovens que pagavam valores de mil a dois meticais para dar bofetadas ou chutes e pontapés, assim como havia alguns que até lavavam viaturas com cerveja, mas a maior parte desse perdeu a vida. Outros encontram-se desgraçados e perderam tudo o que ganharam com a actividade ilegal.



O nosso entrevistado revelou que foi graças à família, que lhe incentivou a trabalhar no projecto de lavagem de carros, que hoje viu que valeu a pena não ter enveredado por aquele caminho. 

 

Já Henrique Filimone, Director da Escola Primária Completa de Mapulanguene, considera: “actualmente muitos jovens abandonaram a ideia de exercer a caça furtiva devido às medidas implementadas pelo Parque Karingani Game, que cercou a área de conservação e indemnizou as famílias residentes nas proximidades da zona”.

 

“Muitas crianças são órfãs de pai. Mais de 20 crianças perderam os pais na caça furtiva. Igualmente, há muita gente detida na África do Sul”, disse Filimone, avançando que, em 2006, um colega seu de nome David, que era o Director-adjunto Pedagógico, abandonou a educação para se dedicar à caça furtiva.


A realização de campanhas de sensibilização como a do dia 3 de Março ajudam bastante a comunidade a ser amiga do rinoceronte e a conservar o mesmo, em vez de matá-lo para a venda. “As comunidades já percebem que o animal tem mais valor vivo que morto porque irá atrair turistas e mais empregos para os jovens locais”, disse Henrique Filimone.

 

Agostinho José Chicuambo, Director-Adjunto da EPC de Panjane, afirma, por seu turno: “existiam rapazes que faziam parte destes grupos, muitos dos quais deixaram de estudar até ao ano de 2016. Eles viam a caça furtiva praticada pelos irmãos mais velhos como uma coisa boa, devido aos valores elevados que os mesmos traziam”.

 

Chicuambo explicou que, com a instalação das fazendas de bravio, a imagem do Posto Administrativo mudou, porque as comunidades vêem os investidores com bons olhos.
O Director avançou que, na zona de Panjane, quatro jovens estão a cumprir penas devido à caça furtiva.

 

 

Papucides Ntela, representante do Fundo Mundial para Natureza (WWF), considera que as escolas devem ser um local de transformação das crianças residentes nas áreas de conservação, porque elas é que podem levar a mensagem para as famílias. “É preciso conscientizar as crianças e as comunidades sobre o valor da fauna bravia”.

 

O representante da ONG que trabalhou em mais de 10 escolas de Magude, interagindo com mais de nove mil alunos das escolas primárias e secundárias, explicou que é preciso mudar a imagem do distrito fazendo com que “as comunidades se apropriem dos programas que a organização leva para aquele distrito. A WWF, em parceria com o Governo distrital, lançou um torneio de futebol em Magude, visando ocupar a juventude para que de facto se verifique “zero a caça furtiva”.

 

Investimento das Fazendas está a impulsionar a mudança de consciência da comunidade

 

Para Ângelo Zeca, supervisor da Masintonto Ecoturismo, “a companhia sempre cumpriu as exigências locais e existem mudanças significativas, assim como, existem jovens locais que estão empregues no Parque. Em termos de produção, a empresa ainda está a trabalhar e com o tempo haverá resultados positivos.

 

Questionado sobre se os despedimentos que ultimamente se verificam não seriam uma ameaça para o retorno à caça furtiva, Ângelo Zeca disse não ter nada para comentar a respeito.



Enquanto isso, Radisone Fernando Massine, representante de programas sociais da Karingani Game Reserve, explicou: “a instituição construiu escolas, casas para os professores, construiu postos de abastecimento de água e apoiou as comunidades com mais de 50 cabeças de gado bovino”.

 

 

Massine avançou que há anos Mapulanguene era uma zona onde a caça furtiva era muito frequente, mas, nos últimos anos, devido ao trabalho com as comunidades, a mesma reduziu, porque as pessoas denunciam de imediato. Massine revelou ainda que existem projectos em curso para empregar mais jovens na Karingani.

 

De acordo com aquele representante, na área de conservação da Karingani, existem as cinco espécies mais procuradas pelos caçadores furtivos, ou seja, os chamados “big five” (Rinocerontes, Elefantes, Leões, Leopardos e Pangolins).

 

“Há cinco anos Mapulanguene era palco da caça furtiva e hoje não”

 

Em entrevista concedida ao nosso Jornal, Fernando António Djinje, chefe do posto de Mapulanguene, no Distrito de Mapulanguene, disse que a construção das quatro áreas de conservação ao longo do posto veio mitigar a questão da caça furtiva. “Há cinco anos Mapulanguene era palco da caça proibida. Muitos jovens preferiram aderir, mas hoje já não se verifica”, explicou.

 

Djinje afirmou: “a comunidade está sensibilizada, uma vez que no passado houve mortes de jovens que eram caçadores furtivos. Mas com a empregabilidade que se regista, maior parte deles preferiram abraçar o emprego que a caça proibida”.
O chefe do posto disse que em Karingani ou Twenty City, “foram empregues mais de 50 jovens de Mapulanguene e os que se dedicam hoje à caça furtiva “são pessoas que vêm de outros locais e actualmente é difícil ouvir-se dizer que alguém entrou, assim como a procura mudou de corno de rinoceronte para marfim”.

 

Fernando António Djinje disse que, entre 2018 e 2019, registaram-se dois casos de elefantes abatidos, depois que um grupo estranho entrou no posto, tendo a comunidade denunciado.

 

Para o dirigente, “a sensibilização das comunidades ajudou Mapulanguene e a questão dos 20 por cento já começou a sentir-se, havendo associações locais já criadas para beneficiar-se dos fundos provenientes da exploração da fauna bravia”.

 

Lázaro Mbambamba, Administrador do Distrito de Magude, intervindo na cerimónia do dia mundial da vida selvagem ou fauna bravia, disse: “Moçambique foi alvo de um gritante tráfico ilícito de cornos de rinoceronte e marfim que agudizou a caça furtiva em todas as áreas de conservação e que resultou em grandes perdas de população animal, principalmente, os “big five” e a perda de muitas vidas humanas”.

 

Mbambamba ressaltou o facto de Magude ter sido infelizmente uma triste referência há anos devido à vontade do lucro fácil. “A caça furtiva agudizou a pobreza das famílias, por terem deixado crianças órfãs, mulheres viúvas e idosos sem condições”. O administrador revelou que, embora o ano de 2020 esteja ainda no início, o distrito de Magude já registou um caso de caça furtiva. Lembrou ainda que no ano de 2018 se verificaram 10 casos e um em 2019.

 

Mbambamba defendeu que é importante ocupar os jovens de forma positiva e que a conservação das áreas com fauna bravia vai trazer mais empregabilidade para Mapulanguene. Mbambamba disse que Magude deve trabalhar para que se erradique na totalidade a caça furtiva. O administrador disse que as pessoas devem habituar a conviver com o animal vivo e não morto, porque só o distrito terá mais turistas e investimentos. (Omardine Omar)

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